ATIVIDADE DE BINGO DE CARTELA NÃO CONFIGURA NENHUM ILÍCITO PENAL
(por Dr. Otávio de Queiroga)
1) A atividade de bingo desde o alvorecer de 1º de janeiro de 2002, tornou desregulamentada com a consumação do prazo previsto pela Lei Maguito (Lei Federal nº 9.981, de 14 de julho de 2000), em seu art. 2º, para que se operasse a revogação ali prescrita dos arts. 59 a 81 da Lei Pelé (Lei Federal nº 9.615, de 24 de março de 1998);
2) Acontece que historicamente a normação jurídica produzida para o setor no Brasil, era que a atividade de jogos de bingo se encontrava proibida sob a classificação de contravenção penal, porquanto inserida dentro da vedação genérica aos jogos de azar, consoante a Lei de Contravenções Penais, art. 50, que data da era “getulista”;
3) Essa anterior disposição, proibia genericamente a prática de jogos de azar, não se referindo especialmente aos jogos de bingo;
4) Posteriormente, mais precisamente em 6 de julho de 1993, veio a lume a Lei nº 8.672, apelidada de Lei Zico, que, por seu artigo 57, permitiu às entidades de direção e prática desportiva a realização de “sorteios de modalidade denominada bingo” ou similar;
5) A seguir, em 24 de março de 1998, a Lei nº 9.615, apelidada de Lei Pelé, por seus artigos 59 e seguintes, manteve institucionalização dos “jogos de bingo”, habilitando para tanto as entidades da administração e de prática desportiva, que, para a exploração do setor, encontravam-se condicionadas à obtenção de autorização junto à União Federal. Essas autorizações teriam, a teor dos termos originais do artigo 60, § 5º, daquela Lei, vigência de doze meses;
6) Depois, a Lei nº 9.981, de 14 de julho de 2000, denominada Lei Maguito, por seu artigo 2º revogou – com “vacatio legis” ( a expressão refere-se ao período de tempo compreendido entre a publicação da lei e sua entrada em vigor) a se findar em 31 de dezembro de 2002, os artigos 59 a 81 da Lei Pelé, justamente, pois, as disposições que regravam a exploração de jogos de bingo pelas entidades previstas naquela Lei;
7) Atualmente a Medida Provisória nº 2216-37 editada em 03.08.2001, em vigor até hoje por força do art. 2º da Emenda Constitucional nº 32 de 11.09.2001, alterou o texto do artigo 59 da Lei Pelé, tornado a atividade de jogos de bingo “serviço público de competência da União”;
8) Essa Medida Provisória não fez referência à Lei nº 9.981/00, nem a revogação dos artigos 59 a 81 da Lei Pelé, determinada, como já frisamos, pela “vacatio legis”, finda em 31 de dezembro de 2002.
9) Portanto, a MP 2216-37, ao menos em sua literalidade, alterou apenas o texto do artigo 59 da Lei Pelé, nada dispondo sobre sua eventual ultravida após 31 de dezembro de 2001;
10) A partir dessa ordem legal, leva-nos a uma ambigüidade, qual seria a ordem legal vigente?
11) A primeira delas pode ser ofertada pelo raciocínio que defenda ter a Medida Provisória nº 2.216-37, ao alterar o texto do artigo 59 da Lei nº 9.615/98 e instituir um regime de serviço público para a atividade de exploração de jogos de bingo, revogado implicitamente a prescrição da Lei Maguito, artigo 2º;
12) Poder-se-ia a princípio sustentar esse pensamento, constatando eventual incompatibilidade pela lógica do razoável entre a MP nº 2.216-37, artigo 17, e a Lei Maguito, artigo 2º, e daí a prevalência da primeira pelo critério da posteridade (norma posterior revoga as anteriores com as quais se incompatibilize explícita ou implicitamente);
13) Essa solução, nada obstante sua racionalidade, desaguaria em resposta que apresenta regime jurídico de serviço público para a exploração de jogos de bingo, a qual está impregnada de inconstitucionalidades, razão bastante para abandoná-la;
14) Na nossa ótica, a segunda linha de pensamento apresenta solução mais conformada com a constituição federal, afastando o regime de serviço público da atividade de jogos de bingo, pretensamente previsto na MP nº 2.216-37, artigo 17, devido às patentes inconstitucionalidades aí implicadas, a revogação dos artigos 59 a 81 da Lei nº 9.615/98 pela Lei nº 9.981/00, artigo 2º, redunda numa situação de desregulamentação legal da atividade de jogos de bingo;
15) Vale dizer, que a partir de 1º de janeiro de 2002, inexiste qualquer disposição legal ou com eficácia de Lei regulando a atividade de jogos de bingo;
16) Em face disso, poder-se-ia imaginar o retorno à situação normativa de ilicitude, ou, mais especificamente de contravenção penal?;
17) Certamente que não, pois a qualificação legal da atividade de jogos de bingo como contravenção penal encontra-se revogada desde a edição da Lei Zico, Lei essa que institucionalizou o setor;
18) Por conseqüência, o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais, desde a Lei Zico, encontra-se especificamente revogado quanto aos jogos de bingo de cartela, recobrando-se o vigor da revogação da Lei Zico pela Lei Pelé, nem a revogação das disposições da mesma, concernentes ao tema, pela Lei Maguito;
19) Porquanto, segundo comezinho princípio de nosso ordenamento, o chamado efeito “repristinatório”, ou seja, revigoramento de uma norma anteriormente revogada, depende de explícita disposição legal que o determine, conforme está expresso na Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 2º, § 3º;
20) Sendo certo, que a Lei Maguito não explicitou qualquer prescrição no sentido de revigoramento da Lei de Contravenções Penais, artigo 50, quanto aos jogos de bingo de cartela;
21) Rechaçada a incidência do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais sobre os jogos de bingo de cartela, e mantida a última legislação a respeito, a inexistência de regramento legal sobre o setor desde 1º de janeiro de 2002, ensejando na incidência direta e solitária das disposições constitucionais referentes à Ordem Econômica;
22) Dentre as disposições constitucionais, especificamos o artigo 170, parágrafo único, que assegura como regra a liberdade de iniciativa econômica e requer a expressa previsão legal para qualquer condicionamento daquela liberdade;
23) Em vista disso, parece um tanto tranqüilo concluir que a atividade de jogos de bingo de cartela, inserindo-se dentro as atividade lícitas (porquanto a ilicitude depende de previsão legal obviamente em vigor), configurando então em atividade econômica aberta à livre iniciativa e, dada a inexistência de Lei sobre o assunto, estão livres os agentes econômicos (empresas privadas), para explorá-la sem necessidade de prévia autorização estatal;
24) É certo que isso poderá sempre ser revertido por novel Lei ou norma com similar eficácia, mas, sem isso, vale a liberdade de iniciativa com a amplitude positivada na Constituição Federal/88, em seu artigo 170, parágrafo único;
25) Não obstante a Lei Maguito ter previsto, em seu artigo 2º, o respeito às autorizações que estavam em vigor, como estas pelos termos da Lei Pelé teriam vigência de apenas doze meses, o fato de seu término não significaria de forma alguma a impossibilidade da exploração da atividade de jogos de bingo de cartela pelos agentes privados, mas, sim, a liberdade para que os mesmos a explorem sem estar condicionados à obtenção de autorização,
26) Mais uma vez, podemos afirmar sobejamente, que inexiste, após 31 de dezembro de 2002, ou desde 1 de janeiro de 2003, lei ou norma de eficácia similar que, respeitando a Constituição, preveja referida restrição à liberdade empresarial;
27) Tanto é verdade, que após o escândalo com o Assessor da Casa Civil do Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, foi editada a MP nº 168, de 20 de fevereiro de 2004, onde já, em seu artigo 1º estabelecia:
“Art. 1º Fica proibida, em todo território nacional, a exploração de todas as modalidades de bingo, bem como os jogos em máquinas eletrônicas, denominadas “caça-níqueis”, independentemente dos nomes de fantasia.
Parágrafo único. A vedação de que trata o caput deste artigo implica a expressa retirada da natureza de serviço público conferida a tal modalidade de exploração de jogo de azar, que derrogou, excepcionalmente, as normas de Direito Penal.”
Com efeito aponta o artigo 4º dessa Medida Provisória:
“Art. 4º O descumprimento do disposto no art. 1º desta Medida Provisória implica a aplicação de multa diária o valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), sem prejuízo da aplicação de medidas penais cabíveis”.
28) Ora, se a Lei Pelé e as constantes medidas provisórias, descriminalizou-se a contravenção do artigo 50 do Decreto-Lei 3688/41, em relação ao jogo de bingo de cartela, como poderia então a aludida medida provisória ter derrogado a referida Lei, operando desta forma uma espécie de repristinação penal ao reverso, tendo em vista que os dizeres da Medida Provisória nº 168/04, conseguiu o cúmulo do absurdo, transformando o que deixara de ser crime, a voltar a ser, deste modo, a prática de jogo de azar, segundo a MP, voltaria a ser contravenção penal;
29) No entanto, a emenda constitucional 32 de 11 de setembro de 2001, reafirma que “é vedada a edição de medida provisória sobre matéria relativa a direito penal.”
30) Posto isto, a ninguém ficaria feio discutir na Justiça e pedir “inaudita altera pars” uma liminar, em mandado de segurança, porque a Medida Provisória era totalmente ilegal, já que quebrava o ato jurídico perfeito, ferindo o direito líquido e certo;
31) De tanta ilegalidade, levou o Senado da República a derrubar tal Medida Provisória, voltando à situação jurídica a situação de vacância legislativa, discutida anteriormente;
32) Não queremos discutir o mérito da competência legislativa da matéria, até porque, o Supremo Tribunal Federal, através de Súmula vinculante decidiu que a competência legislativa é exclusiva da união;
33) Competência essa não exercida pela União, até o presente momento, apesar de existir diversos projetos tramitando no Congresso Nacional sobre o tema;
34) Também é importante salientar, que a Constituição Federal estabeleceu em seu artigo 177, caput, quais atividades econômicas monopolizadas pela União, não encontrando-se como monopólio a atividade de bingo;
35) A doutrina constitucional é pacífica na impossibilidade de ampliação do rol dos monopólios da União previstos na Constituição Federal. O jurista José Afonso da Silva assim preleciona:
“A Constituição não é favorável aos monopólios. Certamente que o monopólio privado, assim como os oligopólios e outras formas de concentração de atividade econômica privada, é proibido, pois está previsto que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise a dominação do mercado, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. O monopólio público também ficou bastante limitado, pois já não se declara, como antes, a possibilidade de monopolizar determinada indústria ou atividade. Declara-se a possibilidade de exploração direta de atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173). Parece-nos que aí não entra o monopólio, que é reservado só para as hipóteses estritamente indicadas no art. 177...”
(Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 18º edição, 2000, p.783)
36) Poder-se-ia admitir a exploração direta da atividade econômica por parte do Estado, atendidos os pressupostos do art. 173 da C.F., mas não estabelecer um monopólio por legislação infraconstitucional, pois a matéria é de índole constitucional;
37) Portanto, as empresas que exploram "BINGO", atende todos os requisitos constitucionais de funcionar nessa atividade de bingo de cartela, conforme toda a exposição jurídico-normativa;
JOSÉ OTÁVIO DE QUEIROGA VANDERLEY
ADVOGADO