quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A influência da mídia no julgamento de causas tributárias e criminais

POR; FÁBIO MARTINS DE ANDRADE

Em outra oportunidade, elaboramos aprofundado estudo a respeito da influência dos órgãos da mídia (ou simplesmente da Mídia) nos variados estratos da sociedade dos dias de hoje, com especial ênfase no processo penal. Com efeito, através de variadas artimanhas, algumas propositais e outras possivelmente involuntárias, a Mídia (sobretudo aquela de cunho sensacionalista) logra distorcer algumas informações e dados veiculados nas notícias que divulga, desde o momento de escolha da pauta, a "investigação" dos fatos, a utilização das palavras e do silêncio, a editoração e até mesmo no formato e destaque da sua publicação. [01]

Naquela ocasião, o foco de nosso estudo deu-se em torno da influência dos órgãos da mídia principalmente no processo penal brasileiro. Para desenvolver tão instigante tema, abrimos variadas frentes com diferentes abordagens, como a penetração da ideologia do medo na sociedade, o sensacionalimo como possível fator criminógeno, diferentes efeitos (negativos, neutros e positivos) da imagem da violência na Mídia e o desenvolvimento da imagem da violência na cidade pela ótica da Mídia, dentre tantas outras.

Especialmente na seara jurídica, ressaltamos a influência que a Mídia pode desfrutar junto à sociedade a partir do manejo de notícias sobre a política criminal, a descoberta e o andamento das investigações de determinado crime, a prisão provisória dos suspeitos, a maior dificuldade na ressocialização durante a execução penal, a decisão dos jurados e com os principais atores do processo, dentre os quais se destaca a figura do magistrado. [02]

No âmbito do processo penal demonstramos naquela ocasião que o magistrado é sim passível de sofrer diferentes graus de influência da Mídia – como cidadão normal e ativo da sociedade que se (des)informa e (de)forma a sua opinião a partir de seus órgãos – especialmente quando focamos esta abrangência nas notícias sensacionalistas.
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Nesta breve reflexão que ora levamos ao conhecimento do leitor, levantamos uma provocação de modo proposital. É possível que os órgãos da mídia influenciem o magistrado na tomada de sua decisão sobre relevante matéria tributária? Entendemos que sim, especialmente cuidando-se da divulgação de notícias sensacionalistas. Esta eventual influência, no entanto, não deve prevalecer (e muito menos de modo escamoteado).

É que o sensacionalismo não se limita única e exclusivamente aos fatos relacionados aos crimes, aos criminosos e aos seus processos penais. Sem qualquer margem para dúvida, parece-nos que este é o sensacionalismo de nível mais rasteiro. Não se limita à chamada "imprensa marrom". Pode ser encontrada diariamente nos melhores periódicos e nas maiores emissoras televisivas do País.

De igual maneira – e guardadas as devidas proporções – é possível vislumbrar a influência exercida pelos órgãos da mídia nos magistrados encarregados de prolatar votos e decisões que envolvem relevantes questões tributárias para o cenário nacional. Aqui o sensacionalismo não se revela pelo tom avermelhado encardido de sangue (como naquela situação anterior). Mostra-se em toda a sua plenitude, contudo, no exagero da divulgação de cifras astronômicas que são repetidas e parecem ganhar a vida sempre que uma nova causa tributária é submetida ao exame do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Geralmente, tais cifras astronômicas, que giram em torno dos números de 11 dígitos (freqüentam a pomposa casa dos bilhões de reais), se prestam a anunciar de maneira alarmista o "prejuízo", "custo" ou "ônus" que será eventualmente suportado pelos cofres públicos caso o Fisco seja derrotado na "disputa bilionária" e os contribuintes saiam vencedores em determinada questão tributária submetida ao crivo da Suprema Corte. [03]

É curioso notar como este ponto de contato entre os dois temas (tributário e criminal) leva a predominância comum do tom sensacionalista às vésperas de um julgamento de relevo. De fato, cuidando-se da influência dos órgãos da mídia na cobertura das notícias sobre a descoberta do crime, a investigação e eventual prisão do suspeito e o oferecimento da denúncia, é freqüente assistirmos à escolha arbitrária de apenas uma das versões possíveis, "geralmente aquela divulgada pelos órgãos oficiais responsáveis pela persecução criminal (versão acusatória)". [04]

Tratando-se de matéria tributária isto também ocorre, possivelmente de maneira desproposital. Talvez o acesso às fontes do quadro oficial de funcionários do Estado seja mais fácil e simples de entrevistar. É possível que para o jornalista um dado fornecido por um funcionário público seja presumido correto e verdadeiro; daí porque muitas vezes não são pesquisados, debatidos, corroborados ou contraditados.

Enfim, distintas causas contribuem para um fenômeno que parece estar paulatinamente chegando aos magistrados do País e causando a indesejável conseqüência de influenciá-los – em maior ou menor medida – na prolação de seus votos e de suas decisões. Trata-se da introjeção pelo magistrado daquelas informações previamente veiculadas pelas notícias divulgadas nos órgãos da mídia (muitas vezes de modo sensacionalista) em torno dos elevados montantes em discussão perante o Poder Judiciário, especialmente às vésperas da prolação de decisão acerca de relevantes questões tributárias.

De certo modo, a situação agrava-se pela responsabilidade colocada nos ombros dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – que julgam em última e definitiva instância – e pode ser de fato demasiado pesada. De um lado, tem-se a alegação fundada em razões jurídicas de que determinado texto normativo viola a Lei Maior. De outro, tem-se as razões sustentadas em proveito da manutenção do status quo legislativo. Dentre elas, podem surgir (pseudo)razões de ordem econômica ou orçamentária a servir de pretenso fundamento para a manutenção do dispositivo legal inquinado. É o apelo ao argumento consequencialista de cunho econômico em matéria tributária, por exemplo, pelo qual se busca simplificar o debate jurídico travado perante o tribunal em uma questão sobre o montante do suposto prejuízo ("rombo") que o cofre público sofreria com eventual decisão contrária ao Fisco e ao interesse governamental, que – registre-se – muitas vezes não se confunde com o interesse social.

Freqüentemente, estas (pseudo)razões sumárias e apelativas sobre o sensacional montante da questão tributária submetida ao julgamento são explicitadas por meio de periódicos jornalísticos, com o intuito de (im)pressionar o julgador. Ainda que pudesse se deixar sensibilizar por argumento de tal natureza, o julgador deveria motivar adequadamente a sua decisão, isto é, deveria invocar as razões – preferencialmente jurídicas e eventualmente corroboradas por outras extra-autos ou até mesmo extra-processuais – que o teriam levado a decidir de tal maneira. É sempre recomendável que fique explicitado pelo julgador que ele se deixou impressionar por argumento de tal natureza, sob pena de ilegitimidade de sua decisão. [05]

Em resumo, tanto no processo penal como também no contencioso tributário, é importante que o magistrado não se deixe pressionar e principalmente impressionar pelos órgãos da mídia. No contencioso tributário eles atuam por meio da divulgação reiterada do sensacional montante estimado do eventual prejuízo para o cofre público na hipótese de decisão final contrária ao Fisco sobre determinada questão tributária em trâmite junto aos Tribunais Superiores. Caso sejam levados em consideração pelo magistrado devem ser devidamente expostos de modo a corroborar os fundamentos jurídicos centrais do voto prolatado. [06]

Ademais, permitimo-nos trazer um último ponto de contato das relações existentes entre o processo penal e os órgãos da mídia de um lado e entre eles e as causas tributárias de outro. No processo penal, além da Mídia ter a possibilidade e a capacidade de possivelmente influenciar diretamente o magistrado (como pessoa, cidadão ativo de sua comunidade e inserido no seio social), ele também pode ser pressionado pela "opinião publicada" pela Mídia. [07]

De igual modo, também no julgamento das causas tributárias, o magistrado pode eventualmente sentir-se pressionado pela "opinião publicada", reforçada ainda mais pela divulgação exagerada de cifras mágicas e sem qualquer comprovação, questionamento ou contradita. Nos julgamentos que ocorrem em última e definitiva instância (no STF) coloca-se toda a responsabilidade sobre aquele elevado montante nos ombros dos onze Ministros, a quem incumbirá decidir se o dinheiro "é do povo" (rectius: do Estado, compreendido como governo em sentido amplo) ou dos "grandes empresários que não querem pagar imposto" (como muitas vezes se ouve nos ambientes mais leigos).

Ocorre que esta simplificação maniqueísta, que aqui foi levada a um extremo tipicamente "sensacionalista" (para fins meramente didáticos), esconde uma perversidade que deve ser adequadamente compreendida.

No Estado Democrático de Direito que pretendemos construir logramos atingir o atual estágio no processo civilizatório – à custa de muitos avanços e retrocessos – pelo qual efetivamente "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5º, inciso XXXV). Além disso, enquanto de modo geral "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações" (art. 5º, inciso I), particularmente na seara tributária "é vedado à União instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida" (art. 150, inciso II), todos da Constituição da República.

Estes relevantes dispositivos constitucionais, situados com maior carga axiológica na parte imutável da Carta Magna, longe de servir à retórica vazia, se prestam a proteger os mais poderosos e os mais necessitados (ao mesmo tempo). De fato, quando um ou mais contribuintes dispõem-se a sustentar, seja na esfera administrativa, seja em juízo, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo de caráter tributário, é inegável a transcendência e evidente a repercussão geral que a questão constitucional da matéria tributária alberga.

É necessário que o tema seja pacificado com relativa agilidade pelo Poder Judiciário, sob pena de excessiva perpetuação de insuportável insegurança jurídica a grassar no ambiente comercial e empresarial do País, com evidentes prejuízos para a circulação de riquezas e serviços, enfim, à sociedade como um todo.

Diante disso, uma questão constitucional de tal natureza, cuja relevância será revelada na proporção direta do agigantado universo de contribuintes que abranger, merece do Poder Judiciário, especialmente do seu órgão de cúpula (o STF), a atenção devida e de modo independente de quem tenha levado o caso ao seu conhecimento (o "grande empresário" ou o "pequeno empresário" ou a pessoa física).

De fato, independentemente da saúde financeira do contribuinte e da capacidade e competência do patrono que sustenta a causa que será alçada à condição do caso-líder (leading case) para pacificar determinada questão constitucional em matéria tributária, é relevante notar que o precedente aí estabelecido tende a se consagrar nas demais causas que versarem sobre a mesma temática, excepcionadas as peculiaridades capazes de apontar para uma solução diversa, seja pela inércia do contribuinte, seja por circunstâncias processuais específicas, ou ainda a subseqüente consideração de argumento até então não levantado perante o tribunal.

Espera-se que a utilização do instrumental veiculado através da repercussão geral e da súmula vinculante permita de modo efetivo a uma maior agilidade na difusão da aplicação do caso-líder (leading case), o que tem permanecido demasiadamente demorado em alguns casos em razão do famigerado dever legal de recorrer que é imposto por lei aos procuradores das fazendas públicas, em razão do parágrafo único do art. 142 do Código Tributário Nacional. [08]
Notas

1. A respeito da hegemônica e onipresente penetração da Mídia na sociedade democrática brasileira registramos que: "Hoje, a Mídia, como instituição fundamental ao exercício pleno da democracia, goza de credibilidade e confiança aos olhos da população à qual deve servir". "Ocorre que, a mídia passou a exercer e desenvolver diferentes graus de influências e ingerências junto à sociedade. É que, tanto a sociedade quanto os indivíduos que a compõem esperam e assimilam as informações divulgadas através das notícias e se informam por meio delas. Com isso, a mídia tem a legitimação de sua atividade no processo democrático". "Tais influências podem ser vistas e principalmente sentidas diariamente. Para tanto, basta o contato, ainda que superficial, com alguns órgãos da mídia. Por exemplo, a telinha da televisão cria rapidamente um clima de comoção social, seja quando divulga o acontecimento fatal de alguma tragédia inesperada decorrente da natureza, seja quando divulga dados sobre crimes ocorridos em circunstâncias mais chocantes ou até triviais. Outro exemplo ainda mais corriqueiro é que o cinema e a televisão ditam a moda e criam manias, trejeitos e clichês, posteriormente imitados pelos telespectadores. Os exemplos são inúmeros, a depender simplesmente de que campo se pretende abordar" (ANDRADE, Fábio Martins de. Mídi@ e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 103).
2. A corroborar tal assertiva, confira exemplificativamente o recente episódio: "DeSanctis reclama também que os ataques de parte da imprensa podem impedir que o juiz julgue com independência" (EDITORIAL. DeSanctis diz que imprensa atrapalha trabalho do juiz. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 09.03.2009. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br/2009-mar-09/ataque-imprensa-interfere-trabalho-juiz-afirma-sanctis [12.03.2009]).
3. Embora muitas vezes tais matérias sejam bem escritas e com informações realmente relevantes para o público leitor, a divulgação dos "números mágicos" realmente (im)pressiona: TEIXEIRA, Fernando. Supremo analisará neste ano temas que envolvem R$ 100 bi. Valor Econômico, São Paulo, 03.01.2008, p. E1; "Apenas três delas [disputas tributárias], (...), podem somar créditos de R$ 150 bilhões, segundo a estimativa da União" (TEIXEIRA, Fernando. Fiesp pede a Gilmar Mendes atenção do Supremo às disputas tributárias. Valor Online, São Paulo, 22.01.2009. Disponível na internet: http://www.valoronline.com.br [22.01.2009]); "A CONSIF alega que o custo potencial das ações que tramitam na Justiça ou ainda poderão ser propostas, questionando esses planos [econômicos, conhecidos como Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e Collor II], ‘monta a mais de R$ 180 bilhões, dos quais R$ 35 bilhões somente relativos à Caixa Econômica Federal (CEF)’. E esse valor, observa, corresponde a cerca de três vezes o patrimônio daquela instituição" (STF. CONSIF pede declaração de constitucionalidade de planos econômicos. Sistema Push de Notícias. 05.03.2009).
4. Tanto a preferência pela versão oficial e acusatória é prejudicial à adequada apuração dos fatos sob investigação, à responsabilidade dos agentes da infração apurada e à sua condenação (quando determinada pela sentença definitiva), como também "uma floresta de versões" é prejudicial para a informação do público. "Ambas conduzem a opinião pública ao equivocado entendimento sobre o assunto que se pretende informar" (ANDRADE, Fábio Martins de. Mídi@ e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 259).
5. Para aprofundamento de toda essa vertente de como usar o argumento pragmático ou conseqüencialista de cunho econômico em matéria tributária, confira a seguinte tese que apresentamos em 2010 ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ para a obtenção do grau de Doutor em Direito Público: "O argumento pragmático ou conseqüencialista de cunho econômico e a modulação temporal dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária".
6. Acerca do princípio da legalidade, confira a seguinte nota de rodapé escrita pelo Professor Roque Antonio Carrazza: "No Brasil, não pode haver tributo sem prévia descrição legal. Assim como, em matéria penal, o princípio da legalidade veio a consubstanciar-se na regra de ouro nullum crimen nulla poena sine praevia lege, em matéria tributária acabou forjando a análoga sentença nullum vectigal sine praevia lege. Tanto o direito sancionador do Estado (ius puniendi) quanto o direito que este tem de tributar (ius tributandi), que, de algum modo, investem contra a liberdade e a propriedade das pessoas, dependem, para serem validamente exercitados, da prévia manifestação do Poder Legislativo. Logo, a lei, tanto a penal, quanto a tributária, deve ser anterior ao fato típico (lex praevia), e nunca o fato típico anterior a ela" (CARRAZZA, Roque Antonio. Segurança Jurídica e Eficácia Temporal das Alterações Jurisprudenciais: Competência dos Tribunais Superiores para fixá-la – Questões conexas. In: FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio; CARRAZZA, Roque Antonio; NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2ª ed. Barueri, SP: Manole: Minha Editora, 2009, p. 52, nota 36). Para aprofundamento de vários outros aspectos de convergência entre o Direito Penal e o Direito Tributário, consultar: DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, 398 p.
7. De fato, com arrimo em Roberto Amaral, já explicitamos em outra ocasião que: "Os órgãos da mídia distanciaram-se de sua função inicial (reportar, narrar) para, vagarosamente, destacarem-se como intervenientes e invasores do fato. Com isso, não mais noticiam, mas opinam. Deixaram de informar para formar opinião. Neste contexto verificado, a relação entre a mídia e a opinião pública chegou a um tamanho grau de hegemonia do primeiro e submissão do segundo que, atualmente, pode-se dizer que, a opinião pública reduziu-se à opinão publicada pelos órgãos da mídia" (ANDRADE, Fábio Martins de. Mídi@ e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 47, apud AMARAL, Roberto. O poder da imprensa e o controle da opinião pública. Disponível na internet: http://www.cebela.org. br/Atualidade-3.htm [05.08.2002]).
8. No mesmo sentido: "A administração pública, por sua vez, até então tratava de dolosamente retardar o cumprimento e observância das decisões do STF, também sob o argumento de inexistência de vinculação obrigatória, impondo um novo e redobrado ônus aos cofres públicos por conta da reprodução, em larga escala, de centenas de milhares de ações que buscavam, tão-somente, o cumprimento da decisão do STF. Esta experiência era bastante comum no âmbito tributário" (APPIO, Eduardo. Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2008, p. 114). Exemplo disso é o permanente inconformismo das fazendas municipais contra a determinação, inclusive com a edição de súmula vinculante, de que não deve incidir ISS sobre as locações de bens móveis.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO

Leia o voto de Ayres Britto sobre prisão cautelar

Por Ludmila Santos

A mera alusão à gravidade do delito ou a inafiançabilidade do crime não valida a ordem de prisão cautelar. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, o pedido deve ter fundamentos que demonstrem que a prisão atende a pelo menos um dos requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal. “Nem a inafiançabilidade exclui a liberdade provisória nem o flagrante pré-exclui a necessidade de fundamentação judicial para a continuidade da prisão”, afirmou o ministro, ao conceder liminar para suspender decisão do Superior Tribunal de Justiça que restabeleceu a prisão cautelar de dois acusados por tráfico de drogas.

Em sua decisão, Ayres Britto destaca que a inafiançabilidade dos crimes hediondos não tem força antecipada de impedir a concessão da liberdade provisória, pois o juiz está submetido ao princípio da individualização da prisão, não somente da pena. “Noutros termos, a prisão em flagrante não pré-exclui o benefício da liberdade provisória, mas, tão-só, a fiança como ferramenta da sua obtenção (dela, liberdade provisória). Equivale ainda a dizer: se é vedado levar à prisão ou nela manter alguém legalmente beneficiado com a cláusula da afiançabilidade, a recíproca não é verdadeira: a inafiançabilidade de um crime não implica, necessariamente, vedação do benefício à liberdade provisória, mas apenas sua obtenção pelo simples dispêndio de recursos financeiros ou bens materiais”.

A privação do direito de liberdade depende da verificação da periculosidade do agente, de acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal. Diz o dispositivo que “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria".

Segundo Ayres Britto, a liberdade de locomoção do ser humano é bem jurídico tão prestigiado pela Constituição que até mesmo a prisão em flagrante-delito deve ser “imediatamente” comunicada ao juiz para que ele decida sobre a regularidade da medida e a necessidade de seu prosseguimento. Ao se manifestar, o juiz deve, em sua fundamentação, demonstrar que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do artigo 312 do CPP. “Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Daí entender o STF que a mera alusão à gravidade do delito ou a expressões de simples apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar”.

Com isso, o ministro Ayres Britto considerou que a decisão do STJ não tem o conteúdo mínimo da garantia constitucional da fundamentação real das decisões judiciais, garantia sem a qual não se viabiliza a ampla defesa nem se afere o dever do juiz de se manter equidistante das partes processuais em litígio.

O caso
De acordo com os autos, os dois acusados que entraram com o Habeas Corpus foram presos em flagrante pelo crime de tráfico de drogas no dia 19 de setembro de 2008 em Canoas, Rio Grande do Sul. Foram apreendidas 54 pedras de crack, 56 gramas da droga ainda não embalada e a quantia de R$ 103. A defesa fez dois pedidos de liberdade provisória, que foram indeferidos. Após finalizado o inquérito policial e recebida a denúncia, o juiz da 4ª Vara Criminal de Canoas concedeu liberdade temporária aos réus por entender que não havia qualquer dos pressupostos do artigo 312 do CPP no pedido.

O juízo de primeiro grau afirmou que, considerando a falência do sistema prisional do país e os dispositivos legais criados para que o acusado responda ao processo em liberdade, a prisão preventiva não é necessária. Isso porque a tramitação do recurso não justifica o seu provimento. Os acusados, segundo o juiz, estão soltos há mais de seis meses e, neste período, não praticaram qualquer ato a autorizar nova segregação cautelar, tanto que continuam soltos.

Um dos acusados é réu primário, não tem nenhum antecedente e possui residência fixa. E, ao que tudo indica, até o momento, não dificultou a aplicação da lei penal ou a instrução criminal. Por outro lado, também não há informações de que o outro suspeito esteja dificultando aplicação da lei penal, embora registre antecedentes por furto.

A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no entanto, o STJ restabeleceu a prisão cautelar de dois acusados por tráfico de drogas. E, por isso, o caso foi parar no Supremo.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

REFORMA POLÍTICA NECESSÁRIA NA ORDEM DOS ADVOGADOS

Por José Saraiva

Tempos de eleição, tempos de debate a respeito da maturidade democrática do país. Entra em cena, novamente, a reforma política que não se restringe ao processo eleitoral estatal, pois não se constrói uma nação apenas com as instituições do Estado. Esse processo inclui as entidades representativas da sociedade civil, dentre as quais se destaca a OAB.

Longe de qualquer pleito eleitoral, cumpre aproveitar os 80 anos de comemoração da entidade e o seu endosso enfático à necessidade de reforma política para refletir a respeito da própria eleição na OAB, não sendo o quanto aqui observado qualquer desapreço aos atuais componentes, eleitos conforme as regras vigentes.

A OAB é constituída de órgãos estaduais e um órgão nacional, todos com uma diretoria executiva e um colegiado. A eleição nas seccionais: diretoria, conselheiros locais e federais, ocorre pelo voto direto dos advogados inscritos nos respectivos Estados-Membros, enquanto a eleição para a diretoria da OAB nacional ocorre pelo voto indireto dos conselheiros federais.

Aparentemente, não haveria distorção nesse modelo se ele albergasse princípios democráticos elementares para a escolha da direção e para a representação nos órgãos colegiados.

A anomalia ocorre porque os concorrentes apresentam-se em chapa única para compor diretoria, conselho federal e conselho seccional, sendo vitoriosa a chapa que obtém a maioria dos votos entre os concorrentes e não dos votantes. Quem vence assume, além da diretoria, a totalidade da representação nos conselhos federal e seccional, deixando sem qualquer representatividade na OAB os advogados que votaram nas demais chapas concorrentes. Tal realidade permite, como não raro ocorre, que uma chapa com trinta por cento dos votos, ou menos, fale com exclusividade em nome de todos os advogados; ou seja, que a minoria fale em nome da maioria, como se esta fosse.

Basta transplantar tal realidade para o âmbito geral que a anomalia salta aos olhos e punge a consciência. Imagine como seria se a chapa dos candidatos ao governo fosse eleita com 30% dos votos e ficasse com a governadoria e com todo o Legislativo, deixando as demais sem qualquer representatividade no colegiado, apesar de, juntas, traduzirem a maioria do eleitorado. Pois é assim na OAB.

Evidentemente tal modelo retira dos advogados a cidadania institucional, além de enfraquecer a OAB na defesa da democracia e da advocacia que lhe forma e sustenta. O tema ressalta diante da prerrogativa de a entidade indicar desembargadores e ministros ao Poder Judiciário, evidenciando o interesse público da questão.

Nesse quadro, o voto do advogado nada vale, ainda se integrante de significativo grupo ou até do conjunto da maioria, mesmo no órgão colegiado, cuja natureza é, exatamente, a pluralidade, a fim de assegurar a todos a mínima representação das ideias, na exata proporção dos votos obtidos. Some-se a isso, a possibilidade de a diretoria ser eleita com menos, às vezes muito menos, de 50% dos votos válidos.

Por certo, facilita dirigir qualquer instituição sem oposição, sem fiscalização, sequer externa, como ocorre nos demais conselhos profissionais. Difícil é manter essa realidade para si e pregar o oposto para os outros, sem incorrer na fragilidade do argumento e sem evidenciar o temor ao contraditório, tão caro ao exercício da advocacia e aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Assim, soa incoerente o clamor da OAB pela reforma política no âmbito eleitoral-partidário e, ao mesmo tempo, deixar de lado a necessidade de uma reforma política na escolha dos seus próprios membros.

As modificações essenciais são: obtenção de mais de 50% dos votos válidos para escolha da diretoria e a representação proporcional nos conselhos seccionais e federal.

Uma das formas possíveis para o funcionamento dessa nova realidade pode ser a apresentação de chapas com integrantes à diretoria e ao conselho seccional e federal, tal como ocorre hoje, sendo a eleição da diretoria seccional por votação direta pelos advogados, com a necessidade de 50% mais um dos votos válidos, com previsão de segundo turno quando necessário. Os membros dos conselhos seccionais e federal seriam eleitos no primeiro escrutínio de forma proporcional aos votos conferidos às chapas, na ordem apresentada de inscrição dos candidatos, apurado o coeficiente eleitoral.

A diretoria do Conselho Federal poderia ser escolhida pelo voto direto de todos os advogados, em cada seccional, sendo eleita a chapa com voto direto obtido na maioria das seccionais, inclusive com segundo turno se preciso, assegurando-se, com isso, a equalização de todos os estados da Federação na escolha da direção maior da entidade.

Outros modelos são possíveis. O importante é resgatar, com urgência, a cidadania institucional dos advogados, a fim de tornar a OAB ainda mais imprescindível à advocacia e à sociedade brasileira, bem como para afastar de suas bordas externas a invocação do velho ditado popular: em casa de ferreiro, espeto de pau.

MINISTÉRIO PÚBLICO TEM PODER PARA INVESTIGAR POLICIAIS

Em decisão unânime, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal negou o pedido de Habeas Corpus ajuizado em favor de um policial militar acusado de tortura contra adolescentes apreendidos com substâncias entorpecentes. A defesa pedia o arquivamento da Ação Penal, argumentando que o Ministério Público não teria legitimidade para a coleta de novas provas e para apuração dos fatos.

Segundo o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, a atividade investigativa do Ministério Público já é aceita pelo STF. “O tema está pendente de solução no Plenário, mas a questão aqui é típica”, disse o relator. Nesse sentido, o ministro afirmou que a tortura praticada por policiais militares já possui diversas manifestações na 2ª Turma no sentido de que “a investigação deve ser feita por um órgão que sobrepaire a instituição policial”.

No entendimento do relator, é justificada a atuação do MP diante da situação excepcionalíssima constatada nos autos: “A atividade investigativa supletiva do MP ante a possibilidade de favorecimento aos investigados policiais vem sendo aceita em recentes pronunciamentos desta Corte”. O ministro finalizou seu voto no sentido de negar a ordem afirmando que o MP é um órgão com “poder de investigação subsidiária em casos em que é pelo menos plausível a suspeita de que falha a investigação policial”.

Controle externo
Ao proferir seu voto, o ministro Ayres Britto reforçou o entendimento de que “perante a Polícia, o MP até tem o controle externo por expressa menção constitucional”. Afirmou ainda que “esse controle externo que a Constituição Federal adjudicou ao MP, perante a Polícia, não tem nada a ver com as atividades administrativas interna corporis da Polícia”.

O ministro Celso de Mello também frisou em seu voto que reconhece a legitimidade constitucional do poder investigatório do MP, “especialmente em situações assim”. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

MALA BRANCA NO FUTEBOL NÃO É INFRAÇÃO DISCIPLINAR

Por Milton Jordão

Impossível, nesta última semana de Campeonato Brasileiro 2010, deixar de tecer breves linhas sofre o fenômeno “mala branca”. Inicialmente, convém delimitar o que se entende, no jargão do futebolês, como sendo esta ocorrência. Tem-se por “mala branca” o incentivo financeiro oferecido por terceiros interessados na vitória de alguma agremiação que não aspira maiores resultados na competição. Geralmente, estes terceiros são clubes que ainda pelejam, no caso do Campeonato Brasileiro, por uma vaga para a Copa Libertadores da América, para não ser rebaixado para a Série B ou, ainda, pelo próprio título nacional.

Esta realidade, apelidada de doping financeiro, ocupa a pauta de redações de jornais, rádios e televisão, sendo constante objeto de debate. E, hoje, é tida como usual e comum no futebol, aliás, uma práxis antiga. Em entrevista recente para o portal Globo Esporte, o Rei do Futebol, Pelé, asseverou: “o que o pessoal confunde é de você ter um prêmio para ganhar uma partida, isso sim. É como você dá um incentivo para o aluno tirar uma nota boa. É diferente de você oferecer dinheiro para entregar o jogo, isso é um absurdo[2]”.

Merece destaque que a dita “mala branca” tem como o escopo incentivar uma agremiação a obter um resultado positivo, uma vitória ou um empate, nunca uma derrota. As relações ocorrem entre uma das equipes envolvidas na partida e terceiros que se beneficiarão com o resultado. Não se admite como tal, a hipótese em que se paga para a equipe perder o jogo[3].

Porque a “mala branca” floresce no futebol brasileiro?

Poder-se-ia responder esta questão por meio de justificativas que, também, circulam na própria mídia: a falta de pagamento de salários, uma chance de ganhar um pouco mais no final da temporada, etc. Todavia, a resposta a questão nos é dada pelo atual presidente do Fluminense Roberto Horcades, de forma oblíqua: “acho que o futebol brasileiro chegou em um estado de profissionalização que não permite mais esse tipo de situação de mala branca ou preta. O Fluminense repudia e sempre repudiou na sua história e preza pelo bom comprometimento técnico das competições[4]”. Embora não tenha ele dito que falta profissionalismo por partes dos clubes que utilizam deste expediente, depreende-se de sua afirmação esta conclusão.

Não se pretende aqui investigar as razões pelas quais ainda no futebol brasileiro admite e convive com este incentivo financeiro, apesar de não ser possível deixar de falar rapidamente sobre isso.

O objeto do debate é avaliar a sua manifestação à luz da novel modificação no Estatuto do Torcedor, especialmente, se haveria subsunção deste tipo de conduta às normas penais incriminadoras ali existentes. Por oportuno, adentrar também no CBJD e avaliar se não se trataria de infração disciplinar.

Com o advento da Lei 12.299/10, o Estatuto do Torcedor sofreu consideráveis alterações, sendo criado um capítulo exclusivo para abrigar seis crimes, três tratam de alteração ou falseamento da competição esportiva. Ei-los:

Art. 41-C. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva:

Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.

Art. 41-D. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva:

Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.

Art. 41-E. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva:

Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa

Cediço que o bem jurídico protegido é a ética e a moralidade das relações esportivas. Protegem-se tais valores por meio do direito penal porque o prejudicado com a ofensa a tais feridas é o consumidor de eventos esportivos, o torcedor nos termos do Estatuto. Veja-se, ainda, que somente existirá o tipo penal se as condutas descritas ocorrerem em certames profissionais (artigo 43).

Força convir que a descrição típica do artigo 41-C demanda que a solicitação ou aceite de vantagem (patrimonial ou não) tenha como escopo alterar ou falsear o resultado de uma partida ou prova. Este tipo se destina aos árbitros dos certames ou quem tenha condição de exercer os verbos-núcleo do tipo. Como a alteração ou falseamento de um resultado é conduta inerente a quem o fiscaliza, seja anotando a súmula ou aferindo os resultados produzidos na partida ou prova, vê-se, então, que este crime é considerado como próprio. Por exemplo, se um fiscal de prova insere na súmula que um atleta após saltar obteve resultado menor do que de fato se constatou in loco.

No Brasil, este tipo penal nasceu em virtude do escândalo ocorrido no Campeonato Brasileiro de 2005 (Máfia do Apito[5]), quando o árbitro Edilson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon teriam atuado em diversas partidas com o escopo de alterar o resultado, influindo consideravelmente marcado penalidades ou faltas perigosas para atingir sua meta.

O artigo seguinte é próprio àquele que deu ou prometeu dar vantagem (patrimonial ou não), portanto, seria aqui imputado o responsável pela “contratação do árbitro” ou daquele que alterou ou falseou o resultado. Portanto, está exclusivamente atrelado ao tipo penal comentado anteriormente.

O tipo penal descrito no artigo 41-E pode ser compreendido em conduta a ser praticada por um atleta, não sem razão, Paulo Castilho, recentemente, o citou quando da realização do Grande Prêmio de Fórmula 1 no autódromo de Interlagos, em São Paulo, fazendo referência ao chamado “jogo de equipe”, dizendo que se o piloto Felipe Massa permitisse que o seu companheiro, Fernando Alonso, o ultrapassasse para ganhar a prova, incorreria na comissão delitiva acima declinada[6].

No pretendo aqui incursionar no mérito desta questão – apesar de discordar da avaliação do festejado promotor de justiça-, pois o centro do debate reside sobre a “mala branca”.

O que constituiria o tipo penal em comento?

Fraudar significa se valer de artifício[7] ou ardil[8] ou outro meio[9] para enganar alguém, no caso a vítima.

Este “alguém” é o torcedor, aquele que adquiriu ingresso para ver uma partida em que as equipes atuem em campo enlevadas por motivos nobres, inerentes à prática do desporto, qual seja, a obtenção de um resultado positivo.

Na hipótese do incentivo financeiro de terceiros para que se vença um jogo é difícil a sua subsunção ao tipo penal do art. 41-E, pois a vitória num certame é a meta de qualquer equipe. Fraudar seria se a equipe, ou alguns de seus componentes, adentrasse o gramado com o objetivo nítido e definido de perder a partida. Caso se deseje punir a “mala branca” teríamos também que punir os próprios dirigentes das equipes que prometem e pagam o famoso “bicho”[10].

D’outro giro, na seara do Direito Desportivo Disciplinar, igualmente não se pode subsumir esta conduta às normas hoje vigentes. No capítulo V, livro III (Infrações em espécie), do CBJD, se encontram as normas disciplinares que protegem o bem jurídico ética desportiva. Entre elas duas se destacam como mais próximas de compreender a manifestação humana aqui debatida, ei-las:

Art. 243. Atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias.

§ 1º Se a infração for cometida mediante pagamento ou promessa de qualquer vantagem, a pena será de suspensão de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias e eliminação no caso de reincidência, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

§ 2º O autor da promessa ou da vantagem será punido com pena de eliminação, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Art. 243-A. Atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.

Parágrafo único. Se do procedimento atingir-se o resultado pretendido, o órgão judicante poderá anular a partida, prova ou equivalente, e as penas serão de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de doze a vinte e quatro partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.

Novamente, colhe-se que a redação legal, tal qual no Estatuto, revela-se insuficiente para compreender o incentivo financeiro para que uma equipe ganhe uma partida. O primeiro tipo disciplinar demanda que os atletas atuem com de modo prejudicial à equipe, leia-se, perder o jogo intencionalmente ou ceder empate quando esteja ganhando, por exemplo.

O art. 243-A, aparentemente, resolve a questão, ao fixar ser proibido atuar com o fim de influenciar o resultado da partida, de maneira contrária à ética desportiva. Esta redação pode, num primeiro instante, nos fazer crer que a “mala branca”, finalmente, tenha sido tipificada. Todavia, é postulado comezinho da ética desportiva a atuação com o objetivo de vencer, respeitando o chamado fair play[11].

Assim, como punir aquele que deseja vencer, ainda que movido por interesses financeiros?

Afinal, não se pode negar que, atualmente, o atleta é um profissional e vive do seu esforço pessoal para ganhar a vida. É uma tarefa árdua conjugar o interesse econômico com os valores éticos desportivos. E, neste particular, o doping financeiro afronta somente a pura moral e não as regras jurídicas, vez que não há fraude ao resultado do jogo. A se considerar que o aceite deste incentivo sirva como móvel será contraditório admitir-se como normal o ganho de bichos ou premiações de artilheiro ou de melhor jogador oferecidas aos atletas, seja pelo clube em que atuam ou entidades organizadoras do esporte.

Seria, portanto, ofensa à ética esportiva querer ser o artilheiro, independente dos resultados da equipe? Esta é uma questão que também viria à tona, dentre outras que surgiriam, caso a interpretação do art. 243-A, do CBJD, fosse estendida às raias do extremo subjetivismo.

Evidencia-se, portanto, que a tão decantada “mala branca” é apenas um ato imoral, à luz de uma ética pura do esporte e também dentro da perspectiva do profissionalismo que este assume como bussines. Ainda assim, algumas vozes hão de surgir em sentido contrário.

De fato e respondendo a questão que serve de título: tem-se que “mala branca” não é crime, nem mesmo infração disciplinar.


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[1] O autor é Advogado Criminalista, Conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Conselheiro do Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, Procurador e ex-Defensor Dativo do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia, Diretor Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e Professor de Direito Penal da Faculdade Ruy Barbosa.

[2] Pelé defende mala branca, mas não acredita em ‘entregada’ do São Paulo. Disponível em:

[3] No cotidiano do futebol chama-se “mala preta”.

[4] Presidente do Fluminense repudia a “mala branca”. Disponível em:

[5] Sobre a “Máfia do Apito”, Carlos Miguel Aidar e Alexandre Ramalho Miranda escreveram uma coluna no Site do IBDD, tecendo análise histórica e crítica sobre o ocorrido. Disponível em:

[6] Massa pode ser preso se der passagem a Alonso no GP Brasil, diz promotor. Disponível em:

[7] “Artifício é toda simulação ou dissimulação idônea para induzir uma pessoa em erro, levando-a à percepção de uma falsa aparência da realidade.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 3, parte especial, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, p. 232).

[8] “Ardil é a trama, estratagema, a astúcia.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Ob. cit., p. 232).

[9] “Outro meio fraudulento é uma fórmula genérica para admitir qualquer espécie de fraude que possa enganar a vítima.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Ob. cit., p. 232).

[10] No futebolês, “bicho” é gratificação paga por resultados obtidos numa partida ou campeonato.

[11] O Comitê Olímpico Internacional, em seu Código de Ética, fixou como um dos princípios de dignidade a atuação do atleta respeitando o fair play (jogo justo), sem o interesse de influenciar a competição de modo a contrariar os princípios éticos desportivos. É de bom alvitre reproduzir o dispositivo constante no Código de Ética do COI, Tópico A, ponto 6: Also, in the context of betting, participants in the Olympic Games must not, by any manner whatsoever, infringe the principle of fair play, show non-sporting conduct, or attempt to influence the result of a competition in a manner contrary to Sporting ethics.

domingo, 5 de dezembro de 2010

COTAS INCLUEM PESSOAS QUE NÃO ESTÃO PREPARADAS

Por Gabriel Quireza Pinheiro

É bem conhecido no meio jurídico o conceito aristotélico de justiça: “Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”. Por incrível que pareça, é também um dos argumentos usados a favor de cotas no ensino superior. A nosso ver, nada mais falacioso. Todo o pensamento a favor das cotas parte de premissas falsas, que devem ser postas a descoberto.

O que faz com que o negro tenha menos acesso às universidades? É simplesmente a cor da pele? Claro que não. Conseqüentemente, não se pode afirmar que há pertinência lógica entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diverso.

As leis instituidoras de cotas, para se qualificarem como aderentes ao princípio constitucional da isonomia, tomam por fato a hipótese de que perfis de cor da pele, por si sós, influem no resultado da prova, o que é um despautério. Simplificando: pressupõem que o negro seja menos inteligente que o branco.

Portanto, usar o citado conceito de justiça para defender as cotas é afirmar que uma etnia é superior a outra, o que nos soa absurdo. Ao longo da história, políticas que reforçaram essa separação das pessoas em raças apenas geraram conflitos e dor, haja vista o “apartheid” na África do Sul e o Holocausto.

Nosso país não tem, ao menos de forma acintosa, conflitos de raça. Convivemos em harmonia no campo das diferenças de cor, já que o que verdadeiramente nos difere e às vezes nos separa, é a condição sócio-econômica. Impor agora à nossa sociedade essa questão racial trará uma discussão que implicará em problemas futuros, na medida em que as pessoas não mais se olharão como “brasileiros”, mas sim como “brasileiro branco”, “brasileiro pardo”, “brasileiro negro”, etc.

Não seria mais razoável e mais justa a promoção de sistemas de bolsas de estudo e cursinhos, e vinculados somente à condição sócio-econômica? Afinal, o apartheid social brasileiro não olha a cor da pele. Temos pobres de todas as cores e em todas as regiões do país.

A verdadeira razão pela qual agora se adota o sistema de cotas é a péssima qualidade do ensino público de base no Brasil. Em vez de melhorar a qualidade das escolas, o governo confortavelmente apóia as cotas, uma medida paliativa e sem custos imediatos.

“Colocar um punhado de negros nas universidades por meio de cotas não resolve o problema social. Beneficia apenas aqueles indivíduos que entram. A mim, me espanta que pessoas de esquerda defendam as cotas. O pensamento esquerdista se baseia na idéia da universalidade de direitos. Só o pensamento ultra liberal não vê os indivíduos como um conjunto de cidadãos, mas sim de consumidores. No interior desse conceito é que surge a idéia de políticas compensatórias, para corrigir desvios de mercado", critica o doutor em geografia humana e colunista da Folha de São Paulo Demétrio Magnoli.

Com as cotas amplamente aceitas e aplicadas o Poder Público já terá se eximido de melhorar o ensino, já que a “igualdade racial” estaria implantada.

Quanto ao ensino superior, que já não é dos melhores, nos parece óbvio que as cotas serão responsáveis por uma queda ainda maior de sua qualidade. Já fui até chamado de racista por fazer tal afirmação, que, aliás, não se aplica apenas às cotas raciais. Qualquer sistema de cotas seja qual for o critério adotado (racial, social, etc.), irá colocar na universidade pessoas que em condições normais não conseguiriam ser admitidas.

Outra grande questão, eminentemente de ordem prática, diz respeito ao critério aceito para a determinação da raça do candidato à vaga. Como não existem critérios objetivos para se definir quem é de qual raça, vige o da auto-declaração. A nosso ver, a simples falta de critérios objetivos para determinação de raça já seria suficiente para colocar um ponto final na discussão.

As cotas são um veneno para a sociedade brasileira, e devem ser combatidas a todo custo, sob pena de um enorme retrocesso, tanto moral e cultural quanto do ponto de vista das relações sociais.