sábado, 3 de dezembro de 2011

É PRECISO REFORÇAR AS PRERROGATIVAS DOS ADVOGADOS


"O advogado é o raio de luz, a janela de esperança que se abre, o único que verdadeiramente pode trazer ajuda e ânimo. Por isso mesmo, defender é muito mais que redigir petições, pleitear e recorrer. Na defesa criminal o advogado tem que revelar amor e compreensão pelo ser humano em desgraça e também a sua dedicação ao serviço dos outros".
Heleno Cláudio Fragoso. Advocacia da liberdade. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 154.

Dia internacional da Abolição da Escravatura, dia nacional do Samba e do Astrônomo, e, ainda, nascimento de D. Pedro II, o dia 2 de dezembro merece ser também lembrado como o dia do Advogado Criminalista.
A data-homenagem, criada no mesmo ano de nossa Constituição Federal, foi gerada no estado de São Paulo pela Lei nº 6.067. No entanto, embora paulista a iniciativa, tem sido comemorada em diversas regiões do país,[1] homenageando aqueles profissionais que exercem a especialidade, árdua e desafiadora, do Direito Penal.
É certo que os advogados já possuem seu marco comemorativo de 11 de agosto (em razão da criação, no Império, em 11/8/1827, dos dois primeiros cursos de Direito do país, em Olinda e em São Paulo, por D. Pedro I), entretanto, com a crescente especialização dos ramos do Direito, sinal marcante de nossos tempos, é natural que se busquem também distinções respectivas, em especial a Advocacia Criminal.
A homenagem de 2 de dezembro nos serve para lembrar sua relevância social e a importância das prerrogativas profissionais — emanações da própria Carta Constitucional, para que os profissionais da advocacia possam exercer de forma plena e desassombrada seu mister em defesa do cidadão.
É a advocacia criminal que historicamente sempre se colocou como um meio de controle racional do poder punitivo.[2] É na seara penal que os conflitos ocorrem com maior freqüência, os embates, o enfrentamento jurídico de arbítrios cometidos por autoridades, desde os cometidos contra o investigado, até aqueles em desfavor das próprias prerrogativas da profissão no exercício da defesa.
O controle de legalidade da atividade estatal é realizado não só pelo Poder Judiciário, mas também pela Advocacia,[3] seja ela Privada ou Pública. Isto porque o advogado se consubstancia em elemento civilizatório da sociedade e tem por missão zelar pela dignidade da pessoa humana, por sua liberdade, e seus direitos fundamentais.
Por essa razão a Constituição Federal, em seu art. 133, estabelece ser o advogado indispensável à administração da Justiça, e garante a sua inviolabilidade por seus atos e manifestações no exercício da profissão. Isso ocorre porque atua na especial condição de agente público[4] de modo a garantir o interesse público pela realização da Justiça. Para garantir tal mister, mune-se o advogado de um rol de direitos imprescindíveis para que possa atuar de forma livre e independente na defesa das garantias do cidadão.
As prerrogativas profissionais dos advogados são direitos, indisponíveis e irrenunciáveis, exclusivos, propter officium, funcionais e indispensáveis ao pleno exercício da advocacia. São direitos-deveres, à medida em que não é facultado ao advogado escolher entre exercer ou não tais direitos. Sua função é pública, e as prerrogativas visam a propiciar a defesa das liberdades públicas dos cidadãos, nos termos da Carta Constitucional.
Na doutrina há uma preocupação em distinguir entre prerrogativas e privilégios. O termo deve ser evitado tanto pelo seu sentido comum, quanto jurídico. No direito inglês, privilege é um direito, uma vantagem/imunidade não garantidos a todos, mas a alguns, a uma classe ou segmento. O attorney-client privilege é o mais antigo privilégio no direito norte-americano[5]. No direito pátrio, no entanto, aplicamos o conceito de privilégio, por exemplo, ao direito ao silêncio (v.g., o privilégio contra a auto-incriminação),[6] que é um direito de todo e qualquer cidadão.
Embora semelhantes, são conceitos diversos, os quais merecem ser distinguidos em razão dos antecedentes históricos da profissão. Não se confundem as prerrogativas profissionais, com as vantagens atribuídas às antiquíssimas corporações de advogados entre os romanos, que consistiam em isenções de encargos municipais, impostos, taxas, títulos honoríficos e benesses imperiais, entre outras regalias.[7] O ministro Celso de Mello, em voto proferido na Extradição no 1.085/IT, muito bem definiu, com a clareza que marca seus votos:[8]
“Na realidade, as prerrogativas profissionais dos Advogados representam emanações da própria Constituição da República, pois, embora explicitadas no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), foram concebidas com o elevado propósito de viabilizar a defesa da integridade das liberdades públicas, tais como formuladas e proclamadas em nosso ordenamento constitucional. As prerrogativas profissionais de que se acham investidos os Advogados, muito mais do que faculdades jurídicas que lhes são inerentes, traduzem, na concreção de seu alcance, meios essenciais destinados a ensejar a proteção e o amparo dos direitos e garantias que o sistema de direito constitucional reconhece às pessoas em geral (sejam elas brasileiras ou estrangeiras), notadamente quando submetidas à atividade persecutória e ao poder de coerção do Estado. É por tal razão que as prerrogativas profissionais não devem ser confundidas nem identificadas com meros privilégios de índole corporativa ou de caráter estamental, pois destinam-se, enquanto instrumentos vocacionados a preservar a atuação independente dos Advogados, a conferir efetividade às franquias constitucionais invocadas em defesa daqueles cujos interesses lhes são confiados.”
Atualmente as prerrogativas profissionais dos advogados estão inerentemente ligadas à liberdade e à proteção dos interesses dos cidadãos. Significam direitos exclusivos e indispensáveis ao exercício de determinada profissão no interesse social[9].
Não é por menos que Nelson Hungria considerava “com todo acerto que o nosso estatuto penal classifica a violação do sigilo profissional entre os crimes que ofendem a liberdade individual.”[10] Concluía, o jurista mineiro: “na preservação de sua pessoa física ou personalidade moral, todo indivíduo deve ter plenamente garantido o livre exercício de sua vontade, e tal garantia seria frustrada, se, tendo forçosamente de recorrer aos conhecimentos técnicos ou à ajuda profissional de outrem, o salteasse o receio de que os seus segredos, confiados ou surpreendidos, fossem traídos. O temor da quebra dos segredos poria em cheque a liberdade de atuação da vontade.”
As prerrogativas possuem, portanto, um caráter bifronte, eis que ao tempo em que prestigiam e garantem aos advogados o livre exercício de seu ofício, também visam a propiciar aos cidadãos toda a amplitude de seus direitos. A independência, inviolabilidade, o direito de usar da palavra, e de fazê-lo de forma plena, o direito de ter acesso aos autos de processos, procedimentos e inquéritos, existem com a precípua finalidade de proteger, em última análise, o destinatário dos serviços prestados pelo advogado, ou seja, o cidadão.
Vemos hoje em dia constantes violações às prerrogativas da advocacia, o desrespeito às garantias profissionais, atingindo o direito de defesa do cidadão, o contraditório, e o devido processo. À guisa de exemplo, observamos, em 2009, a edição da Súmula Vinculante nº 14, a qual demonstra que, certas garantias básicas e elementares, como o acesso aos autos pelo advogado de um cidadão investigado, ainda que previstas em lei e ratificadas através de reiteradas manifestações da Corte Suprema, são desrespeitadas seguidamente a ponto de se ter de criar uma súmula. Mesmo sumulada a questão, as violações do tipo persistem.[11] Não por menos há quem defenda a criminalização da violação das prerrogativas, embora tal conduta já se enquadre, em muitas das vezes, na prática, no crime de abuso de autoridade (art. 3º, j, da Lei nº 4.898/1965).
A data de hoje nos serve, enfim, para lembrar que em um Estado Democrático de Direito, o respeito às prerrogativas profissionais envolve não somente a valorização da advocacia, mas, principalmente, a dignificação da pessoa humana.

[1] OLIVEIRA, Paulo Henrique Martins de. Criminalista é o que mais enfrenta agruras. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-dez-02/dezembro-dia-advogado-criminalista-imagem-justica
[2] BATISTA, Nilo. A criminalização da advocacia. Porto Alegre: Revista de estudos criminais. Ano V – nº 20.
[3] SOUTO, Marcos Juruena Villela. O papel da advocacia pública no controle da legalidade da administração. Interesse Público. Ano VI. 2004. nº 28.
[4] RAMOS, Gisela Gondin. Estatuto da advocacia: comentários e jurisprudência selecionada. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 76.
[5] GILBERT. Law dictionary. Washington: Harcourt Brace and Company. p. 22. Eis a definição do léxico inglês: “A client’s privilege to refuse to disclose and to prevent others from disclosing anything said in confidence to his attorney.”
[6] HC 94.601. Min. Celso de Mello. STF. J. 4.8.2009; HC 100.301. Rel. Min. Joaquim Barbosa. STF. J. 4.11.2010; HC 83.096. Min. Ellen Gracie. STF. J. 18.11.2003.
[7] MADEIRA, Hélcio Maciel França. História da advocacia. Origens da profissão de advogado no Direito Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 83.
[8] DJ, 1/8/2007. J. 26/6/2007.
[9] .Cf. Paulo Lôbo, Comentários ao estatuto da advocacia e da OAB. 2009, p. 48.
[10] HUNGRIA, Nelson. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 255.
[11] Recl. nº 12.810/BA. Min. Rel. Celso de Mello. Liminar proferida em 28/10/2011.

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