quinta-feira, 29 de setembro de 2011

SUPOSIÇÃO DE AMEAÇA A TESTEMUNHAS NÃO JUSTIFICA PRISÃO

Partindo do pressuposto de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus a um acusado de homicídio decorrente de discussão banal. Para o colegiado, a mera suposição de que ele ameaçaria testemunhas ou o fato de ter fugido do local dos acontecimentos não justificam a prisão cautela.

De acordo com o relato, o homem dirigia em alta velocidade, em área residencial, quando foi advertido pela futura vítima. Mais tarde, retornou ao local, armado, disparando contra o peito do morador. A atitude levou o juiz a considerar como necessária a preventiva. Além disso, apontou, sua liberdade permitiria que as testemunhas “se sentissem ameaçadas”.

Ao manter a ordem de prisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo acrescentou que no julgamento do Habeas Corpus originário, o mandado ainda não tinha sido cumprido nem o réu tinha se apresentado espontaneamente. Para a relatora do caso no STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, o juiz, com o aval do TJ, apenas fixou a gravidade abstrata do delito e supôs que o réu, em liberdade, iria ameaçar testemunhas, sem demonstrar elemento concreto que justificasse a prisão cautelar.

A regra, no caso, é a liberdade, explicou a ministra. “A necessidade de fundamentação decorre do fato de que, em se tratando de restringir uma garantia constitucional, é preciso que se conheça dos motivos que a justificam”, afirmou a relatora.

“Pensar-se diferentemente seria como estabelecer uma gradação no estado de inocência presumida. Ora, é-se inocente, numa primeira abordagem, independentemente da imputação. Tal decorre da raiz da ideia-força da presunção de inocência e deflui dos limites da condição humana, a qual se ressente de imanente falibilidade”, completou. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.

HC 100565

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A CRIACÃO DE PARTIDO E A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA

POR: RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO

O artigo 18 do Ato Institucional 02, de 27 de outubro de 1965 decretou: “Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros”. Seguiu-se a um bipartidarismo no Brasil, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), que seria o partido do governo, e com o Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), na oposição. Era possível, em tese, criar partidos, mas as cláusulas de barreira para tanto eram quase insuperáveis.

Nesse cenário político, a Emenda Constitucional 01/69, ao trazer uma verdadeira nova Constituição, passou a punir com a perda do mandato o parlamentar que “por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária”, e também aquele que “deixar o partido sob cuja legenda foi eleito”. O processo de cassação seria de competência da Justiça Eleitoral, emprestando ares oficiosos ao instrumento de cabresto parlamentar.

Assim, a fidelidade partidária, como causa para a perda de mandato parlamentar, era um importante instrumento de que se servia aquele regime ditatorial (1964-1985). Não apenas os parlamentares infiéis, que trocassem de partido no curso dos mandatos, como também os rebeldes, que votavam contra as orientações partidárias, poderiam perder os seus mandatos. Tinha-se à época um mandato imperativo, quando os parlamentares estavam vinculados às orientações dos partidos pelos quais se elegiam.

Tendo ampla maioria no Congresso Nacional, era impossível que o governo fosse derrotado em alguma deliberação. Com esse instrumento de fidelidade partidária, a ditadura pôde manter o Congresso Nacional aberto, certa de que não haveria resistência contra o governo. Os ventos democráticos já sopravam mundo afora, e era necessário que o Brasil não tivesse uma imagem tão negativa no cenário internacional. Era melhor manter um Congresso Nacional, desde que impotente a opor resistências ao governo, a fechá-lo.

Já no declínio do regime militar, promulgou-se a EC 11/78, que alterou, dentre outros dispositivos, a redação dada ao artigo 152 da Constituição de 1967 (com a redação da EC 01/69). A perda de mandato por infidelidade partidária foi mantida, mas foi criada a seguinte exceção no §5º deste artigo: “salvo se para participar, como fundador, da constituição de novo partido”.

A partir desta reforma constitucional que se tornou factível a criação de partidos, efetivamente superando o período do bipartidarismo no Brasil. O MDB foi refundado, sob o nome de Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), tendo a Arena sido extinta para a criação do Partido Democrático Social (PDS). Na mesma época, foram criados o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Progressista (PP).

Com maioria governista no Congresso Nacional, mesmo em declínio, o regime ditatorial sofreu um duro golpe, ainda em 1984, já quando se formaria o Colégio Eleitoral em janeiro de 1985 para as eleições indiretas para presidente da República. O instituto do mandato imperativo acabou sendo relativizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Aplicando uma solução casuística, mas extremamente necessária à transição para a Democracia, o TSE respondeu a uma consulta (CTA n° 6988, Relator NERI DA SILVEIRA, julg. em 27.11.1984, DJ 10/12/1984, p. 21.160) no sentido de que na eleição indireta para presidente da República os parlamentares não seriam obrigados a seguir a orientação dos partidos, por não se tratar propriamente de diretriz partidária.

Com a regra do mandato imperativo, tendo por conseqüência aos rebeldes a perda de mandato, certamente seria eleito Paulo Maluf, do PDS, e era apoiado pelo regime ditatorial. Mas, pela decisão do TSE que conferiu ampla liberdade de voto aos parlamentares e aos delegados dos estados, foi possível a transição democrática, sendo eleitos os opositores ao regime de então, no caso Tancredo Neves presidente, e José Sarney o seu vice-presidente, ambos do PMDB.

Já empossado no novo governo, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 25, de 15 de maio de 1985 que, dentre outros modificações constitucionais, instituiu as eleições diretas para a Presidência da República, e pôs fim à fidelidade partidária como causa de perda de mandato, revogando-se o §5° do art. 152 da Constituição de 1967 (com a redação dada pela EC 01/69, e modificada pela EC n° 11/78). É interessante registrar que, com a mudança de todo um regime, era imprescindível extinguir a fidelidade partidária,ao menos naquele momento, para que as forças políticas se reajustassem no Parlamento. Afinal, a fidelidade partidária e o mandato imperativo eram os instrumentos de que se servia a ditadura para manter sob controle o Congresso Nacional.

Na Constituinte cogitou-se restaurar a infidelidade partidária como causa de perda de mandato dos parlamentares, tendo sido rejeitada a proposta. Nesse cenário, após a promulgação da Constituição de 1988, o STF rejeitou a tese da perda do mandato por desfiliação partidária, inclusive aos suplentes, em histórico precedente de relatoria do ministro Moreira Alves (STF – MS 20927, T.P., julg. em 11/10/1989, DJ 15-04-1994 p. 8.061).

Anos depois, o TSE rompeu com a jurisprudência do STF, e reinstituiu a infidelidade partidária como causa de perda de mandato eletivo aos cargos conquistados pelo sistema proporcional (TSE – CTA nº 1398, Res. nº 22526/2007, Relator Min. Asfor Rocha, DJ 08/05/2007, p. 143). Ao contrário do tempo ditatorial, em que havia o mandato imperativo, manteve-se o mandato livre, mas permitiu-se a perda do cargo em caso de desfiliação do partido. Essa foi a resposta judicial aos imorais troca-trocas de partidos, muitas vezes antes mesmo da posse dos eleitos, desequilibrando o quadro partidário.

O STF placitou esse entendimento, assentando em “obter dictum” nas decisões denegatórias dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604, que após a resposta àquela consulta pelo TSE, o parlamentar que trocou de partido estaria sujeito a perda de mandato por infidelidade partidária (STF – MS 26604, Relatora Min. Cármen Lúcia, T.P., julgado em 04/10/2007, DJe 03-10-2008 p. 135). Neste julgamento, o STF definiu ainda que caberia à Justiça Eleitoral o julgamento dos pedidos de cassação por infidelidade, e também, na ausência de lei, regulamentar o procedimento por resolução. Nesta regulamentação provisória, o TSE disporia sobre causas excludentes da infidelidade partidária, disciplinando causas justas para a desfiliação. Pesou, para esta última parte, a consideração de que a fidelidade partidária é via de mão dupla, devendo ser cobrada também do partido, não sendo razoável exigir fidelidade do parlamentar quando traído pelo seu próprio partido.

Com esta autorização pelo STF, o TSE editou a Resolução 22.610/2007, disciplinando a competência, os prazos e o rito procedimental para os pedidos de perda de cargo. E também estipulou as causas consideradas como justas para a desfiliação. Dentre estas causas, consideradas justas, o TSE incluiu indevidamente a criação de partido (art 1°, §1°, II da Res. TSE nº 22.610/2007), fugindo do comando autorizador do STF, porque esta hipótese não representa infidelidade alguma do partido pelo qual se elegeu.

Pois bem, a Resolução TSE 22.610/2007 teve a sua constitucionalidade impugnada perante o STF, na ADI 3.999/DF, que foi julgada improcedente. Assentou o STF que, não obstante tratasse da resolução de matéria processual, reservada à lei federal, o TSE estava atuando na omissão do Congresso, e com autorização do próprio STF.

Já após esse julgamento, o PPS instaurou novo processo de controle de constitucionalidade, a ADI 4.583/DF, impugnando especificamente o artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007. Alega que esta questão não foi decidida na ADI 3.999/DF, e de fato não foi, e que o TSE extrapolou o comando do STF nos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604. Sustenta não ser a criação de partido uma causa justa para a desfiliação, violadora da Constituição.

De fato, registrou o ministro Gilmar Mendes no julgamento do Mandado de Segurança 26.604 que só admitia não aplicar a perda do mandato “situações específicas decorrentes de ruptura de compromissos programáticos por parte da agremiação, perseguição política ou outra situação de igual significado” (trecho do voto do ministro Gilmar Mendes no MS 26.604, julg. em 04/10/2007, disponibilizado pelo site do STF: www.stf.jus.br).

No mesmo sentido assentou o ministro Ayres Britto admitindo a desfiliação sem perda do mandato “por motivo imperioso, transcendente do seu puro subjetivismo”, quando ocorresse, exemplificou, “perseguição pessoal” ou “deserção dos ideiais de campanha e de programa partidário (…) pelo partido mesmo”.

Fica evidente que a criação de partido como exceção à perda de mandato foi reinstituída indevidamente pelo TSE, ao editar a resolução regulamentadora deste instituto sob a sua nova roupagem. Ao contrário de quando foi admitida em nosso ordenamento constitucional, já não se vive mais em um bipartidarismo, e nem está esta regra excepcional a afastar o dever de fidelidade, previsto expressamente na norma. Reitere-se, nas outras hipóteses admitidas pelo TSE como causas justas, a infidelidade seria do próprio partido, autorizando a desfiliação. Não é o caso da criação de partido.

O ministro Joaquim Barbosa, relator da ADI 4.583/DF, adotou o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/99, deixando de apreciar o pedido cautelar de suspensão da eficácia do dispositivo impugnado. Assim, esta questão será suscitada nos pedidos de perda de cargo a serem propostos em razão da iminente desfiliação em massa que ocorrerá após o registro de novos partidos pelo TSE, com a argüição incidental da inconstitucionalidade do artigo 1°, §1°, II da Resolução TSE 22.610/2007, tendo como parâmetro de controle o disposto nos artigos 14, § 3°, V; 17, caput; e 45, caput, da Constituição.

Em defesa, argumentarão os parlamentares trânsfugas a proteção à confiança, base estruturante da segurança jurídica. Todavia, não poderão negar que este dispositivo já estaria impugnado perante o STF, não sendo razoável admitir que desconheciam as razões de contestação da constitucionalidade do artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007.

Ainda que vencida a argüição de inconstitucionalidade, só se terá como autorizado desligamento de parlamentares que saírem no prazo de 30 dias após o registro pelo TSE, conforme foi respondido à Consulta 75.535 em junho de 2011 (acórdão pendente de publicação, mas disponibilizado o voto condutor da ministra NANCY ANDRIGHI). E neste caso, é possível que o TSE aplique a jurisprudência presente ao tempo que esta causa era considerada justa para a desfiliação, para considerar autorizada apenas a migração dos fundadores e de quem haja assinado “declaração individual ou coletiva de apoio aos atos constitutivos preliminares (manifesto, estatuto, programa), desde que essa manifestação acompanhe ou venha a ser anexada ao pedido de registro provisório” (TSE – CTA nº 7087, Res. nº 12019/1984, Relator Min. Washington Bolívar de Brito, DJ 10/12/1984, p. 21160).

Ou seja, só seria lícita a migração para a nova legenda pelo parlamentar que tenha ao menos assinado a lista de apoio à criação do partido, e desde que essa lista tenha sido efetivamente utilizada no processo de registro do estatuto do partido no TSE. Este aspecto pode afastar alguns parlamentares das novas legendas, especialmente nos estados em que não se conseguiu o apoio mínimo necessário exigido pelo artigo 7º, § 1° da Lei 9.096/95.

Concluindo, é possível que a hipótese de criação de partido, prevista no artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007, seja declarada inconstitucional, ameaçando o mandato daqueles parlamentares que migrarem para o novo partido. E ainda que superada a argüição, ou admitida a tese da proteção à confiança, poderá ser exigida dos trânfugas que comprovem terem no mínimo assinado as listas de apoio para a criação da legenda.

OPERAÇÃO SATIAGRAHA - PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA PERDE PRAZO E NÃO RECORRE DE DECISÃO DO STJ

Por Pedro Canário

A Operação Satiagraha, da Polícia Federal, será enterrada para sempre em breve. É que o Ministério Público Federal perdeu o prazo para recorrer da decisão do Superior Tribunal de Justiça que anulou as provas obtidas pela PF na investigação e determinou o arquivamento do processo.

O acórdão com a decisão foi publicado no dia 5 de setembro, e a notificação, recebida pelo MPF no dia 9. Até esta terça-feira (27/9), 16 dias depois da notificação, e um dia depois do fim do prazo, de acordo com o STJ, a Procuradoria-Geral da República não se manifestou. A PGR, no entanto, nega a perda do prazo. Por meio de sua assessoria de imprensa, alegou que os dias só começam a contar depois de receber os autos do processo, que nunca foram enviados.

A Satiagraha foi montada pelo delegado federal Protógenes Queiroz para apurar denúncia de crimes financeiros do banqueiro Daniel Dantas. A acusação era de desvio de verba pública, corrupção e lavagem de dinheiro. Além de as provas produzidas terem sido consideradas ilícitas, a condenação de Daniel Dantas por corrupção ativa foi anulada pela 5ª Turma do STJ.

As evidências, segundo o STJ, foram obtidas pela Polícia Federal ilegalmente, o que contaminou todo o resto da operação, inclusive a condenação de Dantas. De acordo com a decisão do STJ, a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), criada para assessorar a Presidência da República, extrapolou os limites legais da operação. Também foi considerada ilegal a participação de investigadores particulares na operação.

Com a perda do prazo pelo MPF, o caso será considerado transitado em julgado em breve. Faltam apenas as apreciações de pedidos de extensão da decisão, impetrados por partes interessadas. Depois disso, mais uma alardeada operação da PF chegará ao fim.

Atrapalhações burocráticas
Questionada pela reportagem da ConJur sobre a perda do prazo, a Procuradoria-Geral da República afirmou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não foi notificada da decisão do STJ. Afirmou que a 5ª Turma ainda não enviou os autos do processo. Por isso, disse, não assumiu nenhum posicionamento sobre o assunto, e nem recorreu da decisão.

Como base, a PGR cita o artigo 18, inciso II, alínea h, da Lei Complementar 75/1993 e o artigo 41, inciso IV, da Lei 8.625/1993, a Lei Orgânica do Ministério Público.

Na seção de acompanhamento processual do site do STJ, entretanto, consta que o MPF foi notificado "com ciência" de seu representante. O gabinete do relator do caso, desembargador do TJ do Rio convocado ao STJ, Adilson Macabu, também confirma o envio da notificação.

Pode ter havido falha de comunicação dentro da PGR. O que aconteceu é que o último a dar parecer no caso, o subprocurador-geral da República, Eduardo Dantas Nobre, aposentou-se em outubro do ano passado. Pelas regras do MPF, o processo seria redistribuído para outro subprocurador.

Mas, como a PGR não encontrou em seus sistemas a notificação do acórdão do STJ, não houve a redistribuição. Resultado: o prazo acabou na segunda-feira (26/9), e a PGR sequer ficou sabendo. A Assessoria da PGR informou que só depois de receber a notificação é que poderá se manifestar.

HC 149.250

terça-feira, 27 de setembro de 2011

NO BRASIL, ELEITOR É COADJUVANTE, E NÃO PROTAGONISTA

Por Ben-Hur Rava

A democracia segue sendo a melhor forma de governo, embora sempre haja quem a aponte como a “menos imperfeita”, como fizera o senador Mem de Sá. Isso porque não está infensa a turbulências e crises que são da sua essência.

Direta ou indireta, a democracia reúne elementos básicos da política ocidental: prevalência da lei, igualdade formal entre pessoas, tutela de direitos fundamentais e participação cidadã. Esse último elemento colabora, decisivamente, para a crise.

Não há no Brasil efetiva participação democrática do cidadão e, em ano eleitoral, é sempre bom lembrar isso.

O cidadão vê a democracia como mero instrumento de escolha de governantes mediante o processo eleitoral; isto é, a democracia apenas identificada com o dever de votar e não de participar ativamente do governo. Trata-se, pois, de mecanismo burocrático, procedimental, de escolha de grupos políticos organizados em partidos, que competem entre si para ascender ao poder e formar o governo.

É o que Macpherson chama de “democracia como equilíbrio”, ou seja, serve só para legitimar os políticos que se apresentam na arena política. Esse modelo gera apatia, indiferença e ceticismo com a vida republicana, eis que o cidadão sente-se excluído do processo democrático. Se vê e é visto como elemento externo a ele. Não tem a relação de pertinência democrática pela sua participação, nos termos do que Lincoln, em Gettysburg em 1963, proclamou: “governo do povo, pelo povo e para o povo”.

Participa como coadjuvante ao invés de protagonista, ainda que enalteçam a figura do eleitor em época eleitoral.

Além das consequências negativas à vida pública do país, ocorre a desvalorização do Poder Legislativo que, esvaziado de sua legitimidade popular, torna-se simples chancelador de ações do Executivo, traduzindo-se na chamada “democracia delegativa” que entrega nas mãos do presidente da República a missão salvadora e redentora dos destinos nacionais de conduzir a política interna e externa com supremacia sobre o Congresso Nacional, governando por medidas provisórias e decretos, num verdadeiro presidencialismo imperial.

Na falta de participação do cidadão, emasculam-se os partidos, atrofia-se o Parlamento e fragiliza-se, com isso, a democracia. Assim, importante que sejam utilizados os instrumentos constitucionais para ativar a participação do cidadão e da própria democracia.

Ben-Hur Rava é advogado e professor universitário.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

AS FRAUDES MAIS COMUNS NA PARTILHA DE BENS NO DIVÓRCIO

Por Robson Pereira

Pelo menos dois aspectos bastariam para justificar a volta ao mercado editorial, em setembro, do livro Divórcio, Dissolução e Fraude na Partilha de Bens. A primeira edição, lançada no ano passado, esgotou-se rapidamente. E de lá para cá o tema ganhou novos contornos e interesses, com a aprovação da Emenda Constitucional 66, em julho de 2010, responsável por um aumento expressivo no número de divórcios e, por consequência, de processos recheados de indícios de irregularidades por ocasião da partilha de bens.

Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, autores do livro, foram cuidadosos na definição do problema. Identificam e analisam detalhadamente o arsenal de fraudes e artifícios usados para reduzir ao mínimo possível o patrimônio alvo da partilha em casos de divórcios, mas também apontam os meios disponíveis para que sejam evitados ou combatidos, mesmo reconhecendo a dificuldade e os desafios que precisarão ser enfrentados por advogados e juízes, além do cônjuge prejudicado.

Na estratégia de lançamento da segunda edição, os dois autores correram o país em uma série de palestras e debates, sempre com auditórios lotados por platéias multidisciplinares e não apenas por militantes da área do Direito de Família. Faz sentido. No livro, fica clara a influência cada vez maior exercida pelo Direito Empresarial e Tributário sobre relações até então consideradas meramente familiares.

"A sociedade se sofisticou e isso tornou mais complexo o trabalho do advogado", afirma Gladston. Para ele, o conhecimento elementar que bastava para a advocacia duas ou três décadas atrás já não é suficiente e é preciso acompanhar os novos tempos. "Dizer que a minha área é família e eu não sei nada de empresarial é um risco, porque uma larga zona cinzenta se estabeleceu entre as disciplinas e é exatamente aí que os conceitos se intercomunicam."

No livro, Gladston e Eduarda debruçam-se, principalmente, sobre as estruturas e estratégias empresariais, societárias e contábeis, reiteradamente utilizadas como mecanismo para o desvio ou a ocultação de bens e valores. Em muitas situações, embora se tenha a certeza de que há algo errado, não se sabe exatamente o que aconteceu, onde o dinheiro e os bens foram parar. "Acontece o mesmo por ocasião das sucessões. Não raras vezes isso acaba por desestruturar a empresa e frustrar a expectativas dos herdeiros", comparam.

No caso do divórcio, Eduarda Cotta aponta entre "as fraudes mais comuns" aquelas que envolvem movimentos societários e que, de um modo em geral, se caracterizam pela cessão de quotas ou ações no curso da separação ou feitas em um período próximo, como forma de excluir ou reduzir consideravelmente o patrimônio da pessoa física. "Também são comuns determinadas manobras contábeis, que implicam, no final das contas, na redução do valor patrimonial da empresa", acrescenta.

Há situações de empresas bem sucedidas, mas na hora de um dos cônjuges usufruir de parcela desse patrimônio depara-se como um cenário bem diferente, muitas vezes com patrimônio líquido negativo ou bem próximo disso. Nesses casos, dizem os autores, somente uma auditoria contábil poderá fornecer as respostas, seja pela constatação de simples manobras contábeis, seja por um inexplicável endividamento em período curtíssimo que coincide como o momento da separação judicial.

Para eles, o conhecimento é a principal forma de combate a essas operações, muitas delas encobertas por métodos fraudulentos. "Saber quais são as principais simulações é, antes de tudo, identificar onde o problema pode estar para, assim, tentar detectá-lo e, então, saná-lo", advertem. Entre as fraudes contábeis mais praticadas, os autores destacam a manipulação de dados, a omissão deliberada de transações, apropriações de bens do ativo circulante, simulação de perdas e danos e fraudes relacionadas aos ativos realizáveis, diferidos ou imobilizados.

O livro também aborda vários artifícios ilegais comuns na área gerencial, como o esvaziamento do patrimônio societário, operações que existem apenas nos livros contábeis e até mesmo a criação de empresas espelho. Dependendo do modelo societário da empresa, não são poucas as ocasiões em que as fraudes contam com a participação ou a anuência de outros sócios, principalmente em casos de alienação de quotas e ações ou cisões fraudulentas da empresa durante o processo de separação do casal.

Impedir não é fácil, admitem os autores. Normalmente quando a parte toma ciência da situação as fraudes já foram praticadas e aí somente o trabalho pericial poderá tentar repor o patrimônio original, diz Eduarda. Para ela, em situações normais e que envolvam patrimônio substancial, o ideal seria que essa situação fizesse parte do planejamento societário.

Além de divórcios, o problema também pode estar presente em casos de sucessões, principalmente quando ocorre a morte de um dos sócios, gerando um quadro de desestruturação da empresa ou frustração das expectativas dos herdeiros. Quando um herdeiro assume a titularidade de quotas, sem sempre a situação é mesma, a começar pelo relacionamento entre os sócios. São donos, herdaram e continuarão exercendo direitos e obrigações, mas essa condição não significa, necessariamente, uma intervenção negativa na gestão da empresa. "É uma possibilidade real de conflito que pode muito bem ser evitada, no casamento ou na sociedade empresarial, poupando tempo, dinheiro e aborrecimentos", afirma Eduarda.

EMPRESA QUE PERDEU PRAZO PODERÁ CONSOLIDAR REFIS

Por Rogério Barbosa

A Justiça Federal de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, concedeu a uma empresa o direito de consolidar o parcelamento de dívida pelo Refis da Crise, mesmo depois de ter perdido o prazo para esta etapa do programa. Após análise de Mandado de Segurança, o juiz se utilizou do princípio da proporcionalidade para explicar que, caso o pedido fosse negado, a empresa que já tinha aderido ao programa e cumprido com todas as etapas anteriores, teria enorme prejuízo em virtude de não realização de mero ato formal dentro do prazo, uma vez que, não houve prejuízo ao fisco.

A empresa, representada pelo escritório Pompeu, Longo, Kignel & Cippulo, alegou que perdeu o prazo por conta de problemas de acesso ao programa eletrônico da Receita Federal e também por uma má interpretação das normas regulamentares, mas que sempre agiu de boa-fé, tanto que cumpriu com todas as etapas anteriores do Refis desde que aderiu ao programa em 2009.

O juiz substituto Renato de Carvalho Viana entendeu que existia legalidade na exclusão da empresa do Refis da Crise, já que o artigo 12 da Lei 11.941/2009 (Lei do Refis) discorre sobre os prazo e consequências do seu não cumprimento. Além disso, outros atos normativos, inclusive uma portaria conjunta da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional com a Receita Federal também dissertavam sobre a questão.

Porém, ressaltou que o princípio da proporcionalidade deveria ser considerado, uma vez que, a empresa manifestou boa-fé ao cumprir com todas as outras etapas e, levando em consideração que a reinclusão dela no programa não onera o fisco, não haveria de manter sua adesão cancelada, já que esta decisão traria enorme prejuízo para a apelante.

O juiz determinou que as autoridades restabelecessem a condição de optante do parcelamento da Lei 1.1941/2009, concedendo à empresa todas as vantagens que a empresa teria por esta condição como parcelar as dívidas em até 180 meses com descontos de multas e juros.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

STJ ANULA INTERROGATÓRIO FEITO POR VIDEOCONFERÊNCIA

O interrogatório que aconteceu por meio de videoconferência, antes da lei que permite a modalidade, é nulo. A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou o procedimento feito com Almir Rodrigues Ferreira, condenado por tráfico internacional de drogas e armas de uso restrito. Motivo: ele aconteceu em 2008, quando a lei que trata do assunto, de número 11.900, data de 2009.

Após a instrução criminal, o homem foi condenado a 30 anos e 21 dias de reclusão em regime inicial fechado. A defesa apresentou, sem sucesso, Habeas Corpus no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo). Por isso, resolveu levar o caso ao STJ, sob o argumento de que a legislação vigente à época do interrogatório não previa a possibilidade do ato de nenhuma outra forma, senão com a presença física do réu perante o juiz.

O ministro Jorge Mussi, relator do caso, concordou. “Não obstante a evolução tecnológica, e em especial na área de informática, não há como concordar com a realização do teleinterrogatório sem lei normatizando o sistema, porquanto à época vigia comando garantindo aos processados o direito de comparecer à presença do juiz para ser ouvido”, declarou. Com a decisão, outro interrogatório será feito. A prisão do réu foi mantida. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.

HC 193.025

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

FIANÇA NÃO PODE SER APLICADA COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Uma das propaladas novidades da nova lei de cautelares pessoais penais — Lei 12.403/11 — é a revalorização da fiança. Pela redação anterior, as hipóteses do pagamento de fiança eram regulada pelos artigos 321 e seguintes do Código de Processo Penal, relacionadas aos casos de prisão em flagrante. Assim, o agente preso em flagrante pagava fiança — nas hipóteses admitidas — e obtinha a liberdade provisória para responder o processo.

Ocorre que o marco legal do instituto da fiança padecia de um problema: o artigo310, especialmente seu parágrafo único — acrescentado em 1977 — que dispunha que, diante da prisão em flagrante, o juiz concederia liberdade provisória quando verificasse a inocorrência de qualquer das hipóteses da prisão preventiva (CPP, art. 312), mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo.

Em outras palavras: se após a prisão em flagrante fosse constatado algum dos requisitos do artigo 312, era decretada a prisão preventiva do agente — sem possibilidade de pagamento da fiança para liberdade. Por outro lado, se ausentes os elementos do artigo312, o sujeito era libertado independente do pagamento da fiança.

Logo, a fiança era inviável ou desnecessária, a depender da situação do preso. Em suma, era um instituto atrofiado e inútil.

Com a nova lei de cautelares pessoais penais (Lei 12.403/11) a fiança recuperou sua força. Agora é uma cautelar penal, que pode substituir a prisão preventiva ou outras cautelares caso seja constatada sua necessidade para preservar a ordem do processo e garantir a participação do réu nos atos de instrução. Passa a ser possível a determinação do pagamento de fiança em qualquer delito, medida que valoriza o instituto, fazendo com que recupere o prestígio de instrumento cautelar processual apropriado.

Os valores da fiança foram bastante alterados. O novo art. 325 fixa teto de 100 salários mínimos para infrações até 4 anos e de 200 para infrações acima deste patamar. Os valores podem ser — de acordo com a situação econômica do réu — dispensados, reduzidos até 2/3 ou aumentados em até 1000 vezes.

Em suma, o valor da fiança pode chegar ao máximo de 110 milhões de reais.

O valor da fiança — no entanto — não pode ser aplicado sem critério, ou como forma de antecipação da pena, como tem acontecido em algumas situações. A fiança é uma medida cautelar, ou seja, tem o escopo preciso de garantir a participação do réu nos atos processuais e evitar a frustração da aplicação da lei. Portanto, somente é admissível se houver fundado receio de que o réu turba o processo, viola provas, planeja fuga, ou em casos similares.

Nesses casos, o valor da fiança será proporcional à situação econômica do réu e poderá alcançar alto patamar caso o agente desfrute de situação econômica abastada.

Por outro lado, a ordem de fiança com base apenas na gravidade do crime e na situação econômica do réu, sem indicação das razões processuais que indicam a aplicação da cautelar não parece adequada ao nosso sistema, que tem a presunção de inocência como fundamento. O simples fato de ser réu e rico não é suficiente para aplicação de fianças milionárias.

A fiança não é instrumento para prestigiar a jurisdição frente ao clamor público, ou mecanismo de justiça social, mas meio para salvaguardar o processo diante de indícios concretos de desordem, tumulto, ou de subtração do agente às determinações judiciais.

Assim, se bem aplicada, nos casos previstos em lei, a fiança pode cumprir um papel tão ou mais relevante que outras medidas cautelares, como a própria prisão, desde que observados os princípios da razoabilidade e adequação.

Em suma, como qualquer outro instituto jurídico, a fiança depende do bom senso e da prudência do juiz, elementos que asseguram uma atuação judicial racional, legitima e coerente.

Prioridade
Foi publicada em 8 de setembro a Lei 12.483, que prevê a prioridade na tramitação do inquérito e do processo criminal em que figura indiciado, acusado, vítima ou réu colaborador, ou testemunha protegida pelos programas de proteção.

Leia o texto da nova lei:
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 12.483, DE 8 DE SETEMBRO DE 2011.
Acresce o art. 19-A à Lei no 9.807, de 13 de julho de 1999, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º A Lei no 9.807, de 13 de julho de 1999, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-A:
“Art. 19-A. Terão prioridade na tramitação o inquérito e o processo criminal em que figure indiciado, acusado, vítima ou réu colaboradores, vítima ou testemunha protegidas pelos programas de que trata esta Lei.
Parágrafo único. Qualquer que seja o rito processual criminal, o juiz, após a citação, tomará antecipadamente o depoimento das pessoas incluídas nos programas de proteção previstos nesta Lei, devendo justificar a eventual impossibilidade de fazê-lo no caso concreto ou o possível prejuízo que a oitiva antecipada traria para a instrução criminal.”

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 8 de setembro de 2011; 190º da Independência e 123º da República.

DILMA ROUSSEFF
José Eduardo Cardozo
Maria do Rosário Nunes

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

USUCAPIÃO DO LAR SERVE DE CONSOLO PARA O ABANDONADO

Por Elpídio Donizetti

A Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, acrescentou o artigo 1240-A ao Código Civil, criando nova modalidade de usucapião, a qual os juristas vêm denominando “usucapião especial por abandono do lar”, “usucapião familiar” ou, ainda, “usucapião conjugal”.

Em virtude dessa lei, aquele (homem ou mulher) que “exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m² cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Trocando em miúdos, o marido ou a mulher que abandonar o lar conjugal, perde a sua cota parte do imóvel residencial, desde que se enquadre na situação descrita na lei; em contrapartida, o que ficou na casa, adquire a integralidade do bem.

A concretude auxilia na compreensão. Marido e mulher possuem um imóvel de morada (casa ou apartamento na cidade) de até 250 m², pouco importa se adquirido com economia de ambos ou se o condomínio se formou em decorrência de união estável ou do regime de bens do casamento. O marido se engraçou por uma moçoila e foi viver esse novo amor nas ilhas Maldívias, ficando mais de dois anos sem querer saber notícias do mundo, muito menos da ex.

Resultado da aventura: se a mulher continuou a morar na casa e não era proprietária de outro imóvel urbano ou rural, adquire a totalidade do bem por usucapião. Para ver o seu direito reconhecido, basta ingressar na justiça e provar os requisitos legais. O que não vai faltar é testemunha com dor de cotovelos para dizer que o marido era um crápula. Esse direito, por óbvio, também pode ser reconhecido ao marido abandonado, cuja mulher se envolveu com um bombeiro. E, nesses tempos de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, ao homem abandonado pelo seu homem e à mulher abandonada pela outra.

Em regra, da análise da lei, extraem-se o seu fundamento e o seu alcance ou finalidade — é o que, a grosso modo, em hermenêutica, denomina-se ratio legis. As diversas modalidades de usucapião previstas no Código Civil têm como fundamento, como justificativa para a perda da propriedade pelo usucapido e consequente aquisição pelo usucapiente, a utilidade social da propriedade.

No caso da usucapião pelo abandono do lar, entretanto, não se enxerga a razão, tampouco a finalidade que levou o legislador a inserir o artigo 1240-A no Código Civil. Trata-se de um “Frankestein” que surge no meio de uma lei instituidora do programa “Minha Casa, Minha Vida”, o qual tem por finalidade a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas e a construção de casas para famílias de baixa renda.

As leis, embora visem ao bem comum, às vezes, por descompromisso do legislador com a realidade sobre a qual atua, acabam apenas provocando o mal de todos. É o que, a meu ver, ocorre com a usucapião por abandono do lar, que vai atazanar a vida de quem abandona e de quem é abandonado. Mais proveitoso seria que o legislador, em vez de perder tempo com o acréscimo desse dispositivo ao Código Civil, engrossando a inflação legislativa, tivesse tirado férias — de no mínimo um ano —, ainda que com dinheiro público, numa ilha paradisíaca, para refletir sobre a utilidade das inúmeras leis já existentes.

De minha parte, só vislumbro malefícios nessa modalidade de usucapião. Explico. O requisito nuclear da aquisição da propriedade pelo ex-cônjuge que permanece no imóvel é o abandono do lar pelo outro. Abandono do lar pressupõe culpa ou, no mínimo, falta de motivo justificado para não mais morar sob o mesmo teto. Exemplificativamente, para não perder parte do imóvel, o homem vai ter que provar que saiu de casa porque não mais aguentava as ranzinzices da mulher e esta, por sua vez, vai ter que demonstrar que, cansada de sofrer agressões físicas e psicológicas, resolveu deixar o traste para trás.

O fato é que essa esdrúxula modalidade de usucapião vai ensejar o revolvimento de antigas e dolorosas feridas, tudo no afã de demonstrar que o “meu inferno é o outro”. Estamos assistindo ao retorno do ingrediente denominado culpa, o qual foi abolido da indigesta receita das separações conjugais pela recente EC 66/2010.

A propósito, a principiologia constitucional, na qual se assentam as múltiplas possibilidades de uniões afetivas, sejam casamentos ou uniões estáveis, é informada pelo afeto, o que não se coaduna com qualquer perquirição acerca da culpa. Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel artigo 1241-A. Mas essa é uma questão cujo enfrentamento relego para os institutos especializados dos Direitos das Famílias.

Atento ao desatino do legislador, no intuito de preservar o seu quinhão no imóvel, de duas uma: ou o cônjuge, mesmo diante da insuportabilidade da vida em comum, continua morando sob o mesmo teto, com desastrosas e conhecidas consequências para os conviventes e, sobretudo, para os filhos; ou, antes de juntar suas trouxas, providencia a separação de direito — o que descaracteriza o famigerado abandono —, com a consequente divisão do imóvel.

Se o intuito do legislador — que a todo custo quer mostrar para a população que algo está sendo feito, nem que sejam leis abestalhadas — foi punir quem abandonou o lar, possivelmente não alcançará o objetivo; se o intuito foi proteger o abandonado, o tiro sairá pela culatra. Isso porque, se a opção do cônjuge prevenido for se afastar do outro, dará um jeito de vender o imóvel, colocar os trocados no bolso e sair em busca da felicidade, hipótese em que o abandonado, sem casa, de imediato cairá no olho da rua.

Interessante que o legislador não se preocupou com a sorte de quem foi abandonado num casebre na zona rural. Essa pessoa, abandonada pela sorte e pelo cônjuge, também o foi pelo legislador, que não se dignou em lhe conferir a prerrogativa de aquisição da pequena área de terras onde mora. Dois pesos e duas medidas.

Por todos os ângulos que esquadrinhei a usucapião por abandono do lar, o que pude divisar é que o autor ou autora da idéia que resultou no acréscimo do artigo 1240-A ao Código Civil é uma pessoa citatina, rancorosa e amargurada. Por certo foi abandonada pelo cônjuge ou companheiro e assim, via legislador, que tem os olhos exclusivamente voltados para o fisiologismo e a próxima eleição, buscou um consolo para a ruptura da vida conjugal: a perda da propriedade pelo cônjuge ou companheiro.

Bem, se não logrei êxito na procura da ratio legis, pelo menos ofereço um consolo aos meus atentos leitores. Consegui estabelecer o diagnóstico do mal que aflige o mentor ou mentora desta malsinada usucapião por abandono do lar, a qual não tem cara de Senador ou de Deputado — homens e mulheres aquinhoados pela sorte e por isso de bem com a vida —, mas sim de alguma pessoa amargurada, que se casou com o Direito, que só estuda Direito e que, por isso mesmo, não sabe nada direito; é apedeuta em relações afetivas. A essas pessoas, não importa ganhar, querem apenas que o outro perca. Ainda que seja parte do imóvel adquirido com o esforço comum. Que Deus nos livre dos agoureiros.

Elpídio Donizetti é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professor de Direito Processual Civil do IUNIB, doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da Comissão designada pelo Senado Federal para elaboração do Novo CPC.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

DECISÃO NÃO PODE FICAR AO SABOR DO POPULISMO PENAL

Por Luiz Flávio Gomes

Entendimento anterior: A questão da responsabilidade por morte causada no trânsito por condutor embriagado sempre foi alvo de discussões nos tribunais. Em tese, não há como se apontar com certeza se há dolo eventual ou culpa consciente ou mesmo inconsciente. Em recente julgado, por exemplo, o STJ se posicionou no sentido de que considerando a complexidade da causa, correta foi a decisão de primeira instância que levou o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, aceitando a denúncia do Ministério Público que imputava o dolo eventual (HC 199.100/SP).

Entendimento recente: O STF, no entanto, ao julgar o HC 107.801/SP (setembro de 2011), inovou no tema. Seguindo o voto condutor do ministro Luiz Fux, a 1ª Turma concluiu que o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual.

A responsabilização dolosa pela morte em direção de veículo automotor, estando o condutor embriagado, pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime. Este foi o entendimento que fundamentou a concessão da ordem no HC 107.801/SP (6/9/11), pela 1ª Turma do STF, writ relatado pela ministra Cármen Lúcia.

A concessão da ordem consistiu em desclassificar a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso para homicídio culposo na direção de veículo. O motorista, ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito.

A relatora teve voto vencido, já que a maioria dos ministros da 1ª Turma seguiu o voto-vista do ministro Luiz Fux, determinando-se assim a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba (SP), pois o acusado já havia sido pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri.

Para a defesa, o homicídio na direção do veículo, estando o condutor embriagado, revelaria o caráter culposo do crime por meio de imprudência, não se podendo falar sequer em dolo eventual.

Para o ministro Luiz Fux: “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo”. (Clique aqui para ler notícia sobre a decisão)

Tecnicamente a decisão do STF está correta. A embriaguez, por si só, não significa dolo eventual. Dolo eventual existe quando o sujeito (a) representa o resultado, (b) aceita o resultado e (c) atua com indiferença frente ao bem jurídico. O estar embriagado não significa automaticamente dolo eventual. Cada caso é um caso. O que não se pode é partir de presunções contra o réu. Isso é inadmissível em Direito Penal.

O Brasil já é, agora, o terceiro país que mais mata no trânsito (cf. www.ipclfg.com.br). Passamos os EUA, com cerca de 40 mil mortes por ano. Há, portanto, também nessa área, uma demanda populista punitivista muito forte. Isso vem conduzindo muitas autoridades a aceitarem dolo eventual em muitos acidentes. Ocorre que dolo eventual é uma categoria jurídica muito precisa. É de se lamentar que a pressão popular e midiática venha a interferir nessas questões puramente dogmáticas. É incrível como a realidade criminal vem se impondo sobre a Teoria Geral do Delito ou da Pena.

Os alemães demoraram mais de 150 anos para construir um mundo de conceitos precisos (ou relativamente precisos) no âmbito penal. A mídia e a população emocionada muitas vezes tentam acabar com esses conceitos. Direito é Direito, sociologia é sociologia. As decisões judiciais não podem ficar ao sabor do populismo penal. Tampouco se justifica a sanção penal uma imposta para os graves acidentes de trânsito (penas alternativas). Não sendo também o caso de se jogar esse condenado ao “cadeião”, só resta o meio termo: pena de prisão domiciliar com monitoramento eletrônico. Mas isso depende de mudança legislativa.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

PAI BIOLÓGICO NÃO CONSEGUE ALTERAR CERTIDÃO DE MENOR REGISTRADA PELO PAI AFETIVO

Após sete anos de disputa judicial entre pai biológico e pai de criação, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o registro civil de uma menina deverá permanecer com o nome do pai afetivo. Os ministros entenderam que, no caso, a filiação socioafetiva predomina sobre o vínculo biológico, pois atende o melhor interesse do menor.

A criança nasceu da relação extraconjugal entre a mãe e o homem que, mais tarde, entraria com ação judicial pedindo anulação de registro civil e declaração de paternidade. A menina foi registrada pelo marido da genitora, que acreditava ser o pai biológico. Mesmo após o resultado do exame de DNA, ele quis manter a relação de pai com a filha.

Em primeira instância, o processo foi extinto sem julgamento de mérito por ilegitimidade do pai biológico para propor a ação. Mas o juiz deu a ele o direito de visita quinzenal monitorada. No julgamento da apelação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou a alteração do registro civil da menor, para inclusão do nome do pai biológico, e excluiu a possibilidade de visitas porque isso não foi pedido pelas partes.

Seguindo o voto da ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso do pai afetivo, os ministros reconheceram a ilegitimidade do pai biológico para propor a ação. O Código Civil de 2002 atribui ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher e dá ao filho a legitimidade para ajuizar ação de prova de filiação.

A relatora destacou que o próprio código abre a possibilidade de outras pessoas com interesse jurídico na questão discutirem autenticidade de registro de nascimento. Segundo ela, o pai biológico pode contestar a veracidade de registro quando fica sabendo da existência de filho registrado em nome de outro. “Contudo, a ampliação do leque de legitimidade para pleitear a alteração no registro civil deve ser avaliada à luz da conjunção de circunstâncias”, afirmou a ministra.

Analisando as peculiaridades do caso, a relatora constatou que o pai afetivo sempre manteve comportamento de pai na vida social e familiar, desde a gestação até os dias atuais; agiu como pai atencioso, cuidadoso e com profundo vínculo afetivo com a menor, que hoje já é adolescente. Ele ainda manteve o desejo de garantir o vínculo paterno-filial, mesmo após saber que não era pai biológico, sem ter havido enfraquecimento na relação com a menina.

Por outro lado, a relatora observou que o pai biológico, ao saber da paternidade, deixou passar mais de três anos sem manifestar interesse afetivo pela filha, mesmo sabendo que era criada por outra pessoa. A ministra considerou esse tempo mais do que suficiente para consolidar a paternidade socioafetiva com a criança. “Esse período de inércia afetiva demonstra evidente menoscabo do genitor em relação à paternidade”, concluiu Nancy Andrighi.

Em decisão unânime, a Terceira Turma deu provimento ao recurso para restabelecer a sentença na parte que reconheceu a ilegitimidade do pai biológico para ajuizar ação de alteração do registro de nascimento. No futuro, ao atingir a maioridade civil, a menina poderá pedir a retificação de seu registro, se quiser.

O CHEQUE E A INOPONIBILIDADE AO TERCEIRO DE BOA FÉ

O Cheque e a inoponibilidade ao terceiro de boa fé

Antonio Rodrigo Candido Freire

Advogado, pós graduado em Direito Empresarial, Especialista em análise de risco em concessão e recuperação de ativos, Palestrante, Presidente da AGAFE-Associação Goiana dos Advogados do Fomento Empresarial, Membro efetivo da Academia Goianiense de Letras Juridicas.


1. CONCEITO e HISTÓRICO



Antes de adentrar no objeto deste, oportunamente deve-se se esclarecer o motivo da existência deste título de crédito.

O empresário para se posicionar em meio seus concorrentes deve promover facilidades em vendas, em suas fases gradativas. A concessão de crédito é uma das fases na qual é o caminho que a empresa processa suas vendas. Conceder crédito ao alguém é confiar que haverá cumprimento da obrigação contraída. A ausência de crédito restringe a abrangência do empresário, dificultando ainda mais sua permanência no mundo empresarial em virtude da necessidade que tem seus clientes de utilizar seu crédito para fazer girar valores em outras empresas ou na vida pessoal.

Segundo Tomazette “A palavra crédito deriva de latim creditum, que por sua vez advém de credere, que significa confiar, ter fé.”(2009,p.01)

Concede-se crédito quando se efetua uma transação ou pretende efetuar o pagamento com cheque, seja à vista ou com prazo combinado.

Neste sentido o cheque é uma ordem incondicional de pagamento à vista ou a prazo, do valor determinado por pessoa que mantém conta corrente em casa bancária, devendo este emitente ter fundos o suficiente para se processar o pagamento do valor nele contido.

Para Gladston Mamede a emissão de um cheque é na verdade a concessão de crédito de certa forma, pois quem o recebe ainda há de se dirigir à casa bancária ou meio de compensação para que este possa ser trocado por espécie.(2009,p.235)

Segundo Frans Martins, o cheque é uma ordem de pagamento à vista, dada por quem possui provisão de fundos em mãos do sacado, em favor próprio ou de terceiros. Podendo o beneficiário estar designado no mesmo título ou ser este ao portador.(2008,p.276)

Neste conceito, este renomado doutrinador entende que o sacado depositário da provisão do sacador ao pagar o cheque, apenas cumpre a obrigação de devolver as importâncias que lhe foram confiadas, atendendo assim à determinação do depositante (2001,p.11)

Em princípio o cheque não foi considerado um verdadeiro título de crédito, já que o fator crédito existe de um modo abstrato e ligado a circunstância de possuir o sacado, a quem a ordem de pagamento é dada, importâncias que na realidade pertencem ao depositante junto a casa bancária. Mesmo dentro desta interpretação o titulo de crédito sempre beneficiou dos princípios e institutos próprios dos títulos de crédito, circulando normalmente através de endosso.

Para Fran Martins esta oportunidade de se utilizar das normas cambiárias está intrinsecamente ligada ao fato destas normas não conflitarem a natureza deste documento (2008,p.283)

Controverso o assunto e rico em teses quando se busca a sua origem, para muitos e renomados doutrinadores sua origem remonta ao século XII, assemelha-se a da letra de câmbio e da nota promissória. Para outra gleba de doutrinadores o cheque teve o seu surgimento na idade média, onde na ocasião o ouro era depositado nas casas de ourives, e estes por sua vez emitiam papéis de troca. Dentre vários e controvertidos conceitos de outros respeitados autores aprendeu-se que foi na Inglaterra que o cheque teve seu surgimento, tomando o contorno que hoje apresenta.

O uso do cheque passou da Inglaterra para os Estados Unidos e outros países e precipuamente serviam para fazer transferência ou para retirar dinheiro.

O histórico do cheque é muito bem apresentado por Gladston Mamede, narrando que:

“A origem do termo cheque oferece alguma dificuldade. Curiosamente, enquanto parte da doutrina e da jurisprudência francesa chegou a sustentar que a palavra provinha do inglês “ To check”(verificar,conferir), os ingleses atribuíam etimologia francesa ao próprio verbo to check, proveniente do francês echequier (tabuleiro de xadrex, provindo do latim scaccarium), remetendo às mesas usadas pelos primeiros banqueiros, ainda na idade média, posição que se sustenta, inclusive, na adoção pelos ingleses do termo chequer até o século XIX. Essa identificação com o Medievo, todavia, não impede a aferição de figuras assemelhadas existentes em momentos anteriores da história, a exemplo os síngrafos, que eram documentos de dívidas assinados pelo credor e pelo devedor, usados pelos ricos e comerciantes, sendo dirigidos a seus banqueiros, então denominados trapezitos. Por seu turno, em Roma havia a argentaria, literalmente uma casa de dinheiro, um banco, em que trabalhava o argentário (argentarium), ou seja, um banqueiro, recebendo dinheiro de depósito e efetuando pagamentos por ordem do depositante.

Portanto, as práticas medievais que conduziram ao cheque não são inovadoras, mas mera evolução de práticas comerciais anteriores que diante das necessidades que foram se apresentando, acabaram por dar-lhe nova conformação. O mandado de pagamento, por exemplo era usado pelos imperadores germânicos, que mantinham uma conta corrente em cidades tributárias, sacando valores por meio de recibos. Já os reis ingleses emitiam Bill of Exchequer contra seus tesoureiros mesmo a favor das cidades italianas, das quais eram devedores.

A segurança oferecida pelas casas bancárias, diante do impulso do comércio, levou a prática do depósito dos valores nestes estabelecimentos, bem como de dispor de importâncias por meio de títulos escritos, o que provavelmente se deu na Itália, com stanse dei publici pagamenti. Assim o estabelecimento bancário de Veneza(1942) recebia depósitos e pagava mediante ordem do depositante. A instituição emitia títulos denominados contadi di banco que circulavam como se fossem dinheiro. Já o banco de S. Gerídio, em Genebra (1407) emitia bigliette di cartulatorio, que chegavam de S. Grerício, em dinheiro de contado. Somen as cedole catulario do Banco de Santo Ambrósio, em Milão e as polizze ou fedi di credi do Banco de Nápoles. Na Inglaterra, encontramo-se tanto os Golgsmiths notes, bilhetes de ourives, quanto as Cash Notes, bilhetes de caixa. Os primeiros eram emitidos pelos bancos, ao passo que os segundos, pelos depositantes em favor de terceiros, podendo ser endossados, com quase todas as caractrísticas atuais do cheque. Na Holanda, no século XVI tem quase todas as características tem-se o overwisinje e kassierbrieffe. Uma ordenança de 15 de julho de 1608 chegou a proibir a prática, mas esse foi paulatinamente caindo em desuso em face dos benefícios oferecidos pelos tesoureiros que, entre 1770 e 1780, já contavam 54, só em Amsterdã. Entre os franceses, existiram os mandats blancs( mandatos brancos) e os mandats rouges (mandatos vermelhos), emitidos pelo banco da França: os primeiros eram entregues aos clientes dos bancos para que retirassem importâncias depositadas, os segundos destinavam-se a realizar compensação entre os clientes do banco, quando devedores uns dos outros, por meio de simples lançamento no livro de depósito.

Na Inglaterra, em meados dos século XVIII (entre 1759 a 1772), que pela primeira vez usou-se o nome cheque e deu-se ao instrumento a forma mais próxima da atual, marcando definitivamente a diferença entre o bilhete bancário e o que atualmente se entende por cheque.”



Em nosso país, segundo Frans Martins, o cheque teve seu aparecimento em 1845, na Bahia, onde foi fundado o Banco Comercial da Bahia. Em 1893, através da lei 149-B, surgiu a primeira citação referente ao cheque, no artigo 16, alínea “a”, posteriormente sendo este regulamentado pelo decreto 2.591 de 7 de agosto de 1912.(2008,p.278)

Gladston Mamede mais uma vez contribui de forma expressiva para entender a introdução do título de crédito no Brasil, veja-se:

“Para compreender a evolução do cheque no Brasil, encontra-se excertos valiosos em Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, Pontes de Miranda, Carvalho de Mendonça e Frans Martins e a partir daí manifesta sua narrativa. Entre nós, a prática do cheque precedeu – e muito – a legislação sobre o tema. Como visto, o decreto nº 438/1845, com o regulamento Comercial da Província da Bahia, referia-se ao depósito bancário (receber gratuitamente dinheiro e abrir contas correntes) e ao saque ( verificar os respectivos pagamentos e transferências, por meio de cautelas cortadas dos talões, que devem existir no Banco, com a assinatura do proprietário da tarja). Não se trata, a toda vista, de uma legislação específica para o título, mas de mera referência. Cinco anos depois, a edição do Código Comercial Brasileiro (Lei 556/1850) também não ampliou o tratamento normativo do tema. Inspirado no Código Comercial Português de 1833, a lei brasileira resumiu no artigo 153 o regramento do saque sobre depósitos prévios: “O comerciante que tiver na sua mão fundos disponíveis do comitente não pode recusar-se ao cumprimento das ordens relativamente ao emprego ou disposição dos mesmos fundos:pena de responder por perdas e danos que essa falta resultarem.” Inequivocadamente, é norma excessivamente ampla e, se a figura do cheque nela se comporta, outras também se amoldam, persistindo a situação de uma prática (O uso do cheque para saques de depósitos prévios em bancos ou comerciantes). Em 22 e agosto de 1860 foi editada a Lei 1.063 que continha providências sobre bancos e emissão, meio circulante, diversas companhias e sociedades que também continha disposição que abarcava a prática do cheque, não era específica.

Na República, devem ser destacadas duas normas editadas pelo governo provisório, a lei 149-B e o decreto 917, ambos de outubro de 1890, que já mencionam o termo cheque, embora sem lhe dar tratamento legislativo específico. Somente em 1906, por iniciativa do ministro Leopoldo Bulhões, decidiu-se por uma regulamentação para o instituto, encarregando-se o jurista Ubaldino do Amaral a produção do anteprojeto- que à época ocupava a presidência do Banco do Brasil. Note-se que em 1931 o Brasil participou da conferência de genebra aderindo a esta. Todavia a norma somente foi promulgada em janeiro de 1966 via o decreto 57.595/66, sendo substituído em, 1985 através da lei 7.357/85.”



A partir de seu surgimento no país, o cheque tem sido o preferido como forma de pagamento por grande parte dos consumidores e nos últimos anos seu uso tem retraído gradualmente, porém acredita-se que devido a cultura informal adotada no país o cheque ainda reinará como absoluto por muitos anos.

Habitualmente, para o cheque há a intervenção de três pessoas na sua emissão, sendo:

A - o emitente sacador ou passador;

B - o sacado, normalmente sendo o banqueiro;

C - o beneficiário, tomador ou portador.



A regra é, para que se possa emitir cheques, deve o sacador (aquele que emite o cheque) ter fundos em poder do sacado (banco ou instituição financeira), ou seja, valores disponíveis em sua conta bancária, sendo tais fundos próprios, derivados de depósito à vista, ou colocados à sua disposição pelo sacado. A falta de fundos, mesmo configurando fato típico criminal (estelionato), em alguns casos, não desvirtua a validade do título como cheque, continuando líquido certo e exigível.

Os títulos de crédito surgiram com o fundamento de fazer circular os valores oriundos do crédito concedido, segundo o ilustre Cesare Vivante(apud Fabio Ulhoa Coelho), "é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado". Esse conceito é repetido no art. 887 do Código Civil.(2004,p.369,v1)



O título de crédito é um documento que sua existência comprova uma relação jurídica já consumada, sendo este dotado de alguns requisitos tornando-o diferente de outros documentos. Representando um direito materializado em um documento.



A característica de negociabilidade dos títulos de crédito pressupõe que sua circulação deve ser simplificada, desde que atendidos os requisitos essenciais, a transmissão dos direitos creditórios deve ser possível.



Neste pensamento assevera Fábio Ulhoa Coelho:

“A fundamental diferença entre o regime cambiário e a disciplina dos demais documentos representativos de obrigação [...] é relacionada aos preceitos que facilitam, ao credor, encontrar interessados em antecipar-lhe o valor da obrigação (ou parte deste), em troca da titularidade do crédito.” (2004,p.369,v1)



Deste modo a visão jurídica dos títulos de crédito é a exata possibilidade de promover a circulação no mercado, fomentando várias atividades ao mesmo tempo, gerando riquezas e a sobrevivência de cidadãos em empresas.



A circulação do cheque é possível através do endosso em branco, em preto ou ainda póstumo, onde o portador em caso de não pagamento poderá exigir o pagamento de qualquer um dos envolvidos, emitente ou endossatário.



A Lei 7.357/85 assevera:

Art . 20 O endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque. Se o endosso é em branco, pode o portador:

I - completá-lo com o seu nome ou com o de outra pessoa;

II - endossar novamente o cheque, em branco ou a outra pessoa;

III - transferir o cheque a um terceiro, sem completar o endosso e sem endossar.



2. CARACTERÍSTICAS INTRINSECAS



Para Cesare Vivante, cheque é um título de crédito provido de um forte rigor cambiário em sua forma (cartularidade), ou seja, o cheque tem um padrão do banco central a ser seguido em sua forma de existir. Quanto ao seu conteúdo obedece a literalidade, quer dizer que vale o que está escrito no cheque, e em sua execução judicial goza de autonomia, o cheque é prova suficiente do débito, e abstração, que quer dizer que dentro do prazo de execução e enriquecimento ilícito o cheque goza de abstração quanto sua origem, logo não há de se discutir a origem do débito ou a causa da existência da dívida, o cheque já nasce com essas prerrogativas. Outros autores denominam as características em princípios, atributos ou requisitos essenciais.

As características são de sumaríssima importância, pois esta rigidez representam as normas gerais que regulam os títulos de crédito, mantendo assim a segurança jurídica no meio empresarial fortalecendo sua circulação. As características ou princípios são a abstratividade, cartularidade, literalidade, autonomia e independência.

A abstração é uma característica do cheque que admite sua desvinculação ao negócio que lhe deu origem, trazendo consigo uma boa fé imediata. Desta feita o cheque poderá circular seu valor sem que deva estar vinculado diretamente ao negócio jurídico que lhe originou, podendo o portador nem mesmo conhecer o emitente.



O artigo 13 da lei do cheque adverte:

Art . 13 As obrigações contraídas no cheque são autônomas e independentes.

Parágrafo único - A assinatura de pessoa capaz cria obrigações para o signatário, mesmo que o cheque contenha assinatura de pessoas incapazes de se obrigar por cheque, ou assinaturas falsas, ou assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que, por qualquer outra razão, não poderiam obrigar as pessoas que assinaram o cheque, ou em nome das quais ele foi assinado.

A cartularidade segundo o renomado Tomazette, na verdade é a materialização do título de crédito manifestado em papel, pressupondo necessária a apresentação do documento para o exercício do direito.(2009,p.24)

A Literalidade é a descrição de seu valor expresso e nada mais. Segundo Gladston Mamede Apud Tomazette: “na face do papel estão escritos, nos limites disciplinados pela lei, todos os elementos indispensáveis à compreensão jurídica do problema”(2009,p.30). Em outras palavras, no cheque vale o valor que está escrito, não podendo o portador presumir valor diferente do expresso literalmente na cártula.

Autonomia, por sua vez é uma garantia de negociabilidade do título, não obrigando o portador a ter conhecimento dos direitos que originaram a emissão deste.

Para Tomazette “qualquer pessoa de boa fé, que adquira a condição de credora do título de crédito, adquire um direito novo como se fosse um credor originário, não ocupando a posição do antigo credor”(2009, p.33).

A independência que este doutrinador manifesta não conta com a unanimidade na doutrina quanto a esta característica, mas explica que trata de não necessidade de outro documento para valer. Por si só já é válido não carecendo de suporte auxiliar para sua validade.

Gladston Mamede colabora, manifestando que a autonomia que os títulos de crédito devem exibir em concreto, ou seja, em cada caso, faz-se necessário examinar a cártula, na qual poderá haver elementos que a descaracterizem.(2006,p.326)

Os requisitos genéricos para a criação de qualquer ato jurídico devem obedecer a previsão estampada no artigo 104 do Código Civil Brasileiro, senão veja-se:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Se o agente é considerado capaz é lícito que este emita títulos de crédito que sejam receptados pelo mercado com a devida segurança jurídica. A legislação é bastante rígida nas obrigações contraídas, e estas quando são manifestadas através do cheque não é diferente. Suas obrigações são autônomas e independentes, repetindo o princípio geral dos títulos de crédito ( 2006,p.383).

Este mesmo doutrinador acentua que excetuam-se as controvérsias estabelecidas diretamente entre o emitente e o portador, por relações pessoais havidas entre si, bem como, em relação a terceiro, quando tenha recebido o título de má fé, ou seja, tendo conhecimento de defeito existente no negócio fundamental. Logo se o título circulou, e não tendo o terceiro conhecimento de algum vício, não poderá o emitente opor-se devido as exceções pessoais. (2006,p.383)



3. A TEORIA DA CAUSA DEBENDI

O assunto deste tópico ainda é causador de muitas discussões nos tribunais, pois a busca da identificação da causa debendi é suscitada em sede de defesa alegando ser preciso a justificativa concreta da relação que originou a emissão do título de crédito cheque esquivando da obrigação contraída.

Ab initio, mister se faz entender o que é causa debendi. Segundo dicionário da língua portuguesa o termo em latim significa causa do débito ou causa da dívida.

Controverso é o assunto, pois neste trabalho busca identificar o exato momento em que a causa debendi se torna obrigatória quando se procede a cobrança judicial de um cheque visando seu recebimento.

O ilustre doutrinador Fran Martins leciona:

“o cheque é um titulo de crédito que tem a vocação de circular pela simples tradição manual. O cheque pode trazer menção ao portador ou mesmo não trazer especificação do beneficiário, em tal caso sendo considerado portador. Pode ainda o cheque trazer o nome do beneficiário, a sua transmissão se faz pelo endosso, tenha ou não cláusula à ordem. A nova Lei do Cheque, seguindo a orientação da Lei Uniforme, estabeleceu que ainda que não traga expressamente a cláusula à ordem, indicando o cheque uma pessoa como beneficiária, essa pode, apesar da ausência da cláusula à ordem, transmiti-lo pelo endosso." - (2008,p.55).

Realizando um negocio jurídico e usando um cheque como forma de pagamento, e permitindo a livre circulação deste, a obrigação de pagar o cheque deve ser cumprida, se o portador do cheque for terceiro de boa fé este não sofrerá as exceções do emitente. Trata-se de ato temerária qualquer recusa de pagamento com base no lastro da causa que originou a emissão, resguardado as ocasiões em que se constate ilicitude na sua emissão.

Neste sentido, o cheque goza de autonomia para sua circulação. Assevera Waldirio Bulgarelli, veja-se:

“A autonomia é requisito fundamental para a circulação dos títulos de crédito. Para esta ela, o seu adquirirente passa a ser titular de direito autônomo, independente da relação anterior entre possuidores. Em consequência, não podem ser oponíveis ao cessionário de boa fé as exceções decorrentes da relação extracartular, que eventualmente possam ser opostas ao credor originário.”(1989,P.56)

Claro então está que o obrigado cambial não pode oferecer contra o terceiro de boa fé nenhuma oposição de cunho pessoal inerentes ao emitente originário do título, salvo nos casos de má fé comprovada.

A má fé que poderá ser alegada pelo emitente surge na fase contratual do negócio efetuado, no qual seria cristalina a oposição entre o contratante e contratado. O que ocorre é que terceiro adquirente do cheque recebido em face da sua circulação geralmente não tem conhecimento do vício e nem tampouco da origem da dívida, pois a circulação deste é garantida e sua autonomia e abstração garantem. É o caso de que alguém que compra um cavalo mangalarga e paga com cheques e imediatamente descobre que o animal não é puro. Trata-se neste caso de má fé, podendo então opor-se ao pagamento do título de crédito. Já, se o título estiver sido passado a diante e este estiver em poder de terceiro, sem saber da má fé do vendedor este é considerado terceiro de boa fé, e na fase cambial não poderá este sofrer oposição pessoal.

Na fase cambial a má fé somente existe se comprovadamente o portador do título de crédito já soubesse do vício do negócio jurídico contratual e promoveu a circulação. O vício surge na fase contratual e carrega seus efeitos negativos para a fase cambial, possibilitando assim oposição de terceiro. Usando o mesmo modelo anterior, se no caso da venda do cavalo, o portador terceiro do título de crédito tivesse conhecimento da raça do cavalo e da venda maculada com a falsidade sobre a raça do animal, esse terceiro sofrerá diretamente a oposição de terceiro em virtude de sua má fé na distribuição do título.

A abstratividade e literalidade do título de crédito cheque é uma característica que o acompanha até sua liquidação, mas não se trata de uma premissa absoluta. A boa fé é a condição para a manutenção destas características, onde a discussão da origem da dívida somente pode ser verificada junto aos contratantes, excluindo o terceiro de boa fé, e somente envolvendo este nos casos de má fé comprovada.

O Superior Tribunal de Justiça em caso similar, manifestou sobre a execução de cheque, tendo como portador um terceiro de boa fé e decidiu:

"O cheque é título literal e abstrato. Exceções pessoais, ligadas ao negócio subjacente, somente podem ser opostas a quem tenha participado do negócio. Endossado o cheque a terceiro de boa fé, questões ligadas a causa debendi originária não podem ser manifestadas contra o terceiro legítimo portador do título. Lei 7.357/85, arts. 13 e 25. Recurso Especial conhecido e provido, para o restabelecimento da sentença de improcedência dos embargos" (STJ, Resp 2814/MT)

Outro julgado pertinente externa:

Número do processo: 2.0000.00.413944-0/000(1)

Relator: Des.(a) ANTÔNIO SÉRVULO

Relator do Acórdão: Des.(a) Não informado

Data do Julgamento: 10/03/2004

Data da Publicação: 27/03/2004

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE LOCUPLETAMENTO - CHEQUE - TÍTULO AUTÔNOMO E INDEPENDENTE - CAUSA DEBENDI - IRRELEVÂNCIA - TERCEIRO DE BOA-FÉ - SENTENÇA REFORMADA.

O denunciado não está, por lei ou por contrato, obrigado a ressarcir ao denunciante os prejuízos que venha a sofrer com o resultado da ação, não viola o art. 70, III, do Código de Processo Civil, a decisão que indefere a pretendida denunciação da lide.

É presumida a boa-fé de terceiro, portador do cheque, em face de sua autonomia, literalidade e abstração, não sendo meio hábil à sua infirmação frágeis alegações despidas de provas, devendo prevalecer o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais, uma vez que lhe é estranha a causa debendi motivadora de sua emissão, a qual diz respeito, tão-somente, ao credor e devedor originários". (TAMG, 1ª Câmara Cível, Apelação nº 310.617-4, Relator Juiz Nepomuceno Silva, j. 29.08.2000, decisão unânime).



Assevera ainda este outro julgado, veja-se:



EMBARGOS À EXECUÇÃO. CHEQUE. ENDOSSO. OPERAÇÃO DE FACTORING. ALEGADA AUSÊNCIA DE CAUSA DEBENDI. INCOMPROVADA MÁ-FÉ DA ENDOSSATÁRIA NA AQUISIÇÃO DO TÍTULO. INOPONIBILIDADE DAS EXCEÇÕES PESSOAIS DO DEVEDOR CONTRA O ENDOSSATÁRIO DE BOA-FÉ. Não são oponíveis as exceções relativas ao negócio jurídico subjacente contra o endossatário de boa-fé, face à autonomia e abstração inerente ao título, que circulou mediante endosso e operação de factoring. Incomprovada má-fé da endossatária na obtenção do endosso. Sentença de improcedência confirmada. RECURSO IMPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70008093858, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgado em 30/06/2005).(grifo nosso)



Exposto está nos julgados anteriores que na execução, onde se tem um título de crédito extrajudicial, certo, líquido e exigível não será possível buscar pela escusas com o argumento da ausência da causa debendi e se estiver se tratando de ação de locupletamento indevido ou monitória não há de se falar também em causa debendi. A prova da dívida é desnecessária, pois se trata de título que goza de autonomia e literalidade, podendo tão somente sofrer oposições pessoais se estiver se tratando de terceiro portador que agiu de má fé ou tinha conhecimento de vício na fase contratual.



4. O SURGIMENTO DA CAUSALIDADE



Abordar a causalidade em um título de crédito abstrato é tema bastante controverso na direito empresarial. Segundo Gladston Mamede:



“A compreensão do cheque como título autônomo e abstrato, todavia não pode fazer-se de maneira absoluta, conduzindo teoria e, designadamente, prática a situações absurdas, resultantes de uma postura formalista extrema.”(2009,p.263)



A abstratividade do cheque deve ser abandonada ou deve a causa debendi ser analisada nos casos onde foi detectado erro no negócio jurídico por vício contratual ou mesmo por erro, dolo e coação.

O Código Civil Brasileiro é cristalino quanto à anulabilidade do negocio jurídico que apresenta vício na fase contratual. Os defeitos do negócio jurídico são os vícios de consentimento como erro, dolo e coação.

Estão ligados a divergência na vontade do emitente, dando uma idéia de ação não verdadeira, permitindo alegações de nulabilidade do ato e por conseguinte o cheque que tenha sido usado como forma de pagamento em transação comercial.

Contribui ainda a lei do cheque quanto a impossibilidade de oposições de terceiros de boa fé, veja-se:

O artigo 25 da Lei 7.357 assevera:

Art . 25 “Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.”



Desta feita a oposição de terceiro de boa fé é causador de grandes conflitos, pois o desconhecimento ainda leva muitos a postergarem o inevitável, que é o pagamento do título de crédito.

Como já dito anteriormente na fase cambial, a Ação de execução onde se tem um título de crédito extrajudicial líquido, certo e exigível não prescinde prova outra senão o cheque.

Na Ação de Enriquecimento ilícito, que segundo o doutrinador André Luiz Santa Cruz Ramos:

“esta espécie de ação específica na legislação checaria prescreve em dois anos, contados a partir do término do prazo prescricional. Destaque-se que se trata de ação cambial, ou seja, nela o cheque conserva suas características intrínsecas de título de crédito, como autonomia e a consequente inopobilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa fé. Segue todavia o rito ordinário de uma ação de conhecimento, uma vez que com a prescrição o cheque perdeu, como dito, a sua executividade.”(2009,p.265)



Portanto, na modalidade de Ação de Locupletamento ilícito não prescinde de comprovação de causa debendi.

Na ação monitória existem controversas diversas, onde a corrente majoritária manifesta que também não prescinde de comprovação da causa debendi, ocorrendo uma verdadeira inversão do ônus da prova do débito, onde, se o devedor não comprovar o pagamento do débito o cheque subsiste como dívida comprovada, veja este julgado:



PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO MONITÓRIA – CHEQUE PRESCRITO – DOCUMENTO HÁBIL À INSTRUÇÃO DO PEDIDO – IMPUGNAÇÃO – INICIAL – DESCRIÇÃO DE CAUSA DEBENDI – DESNECESSIDADE – I. A jurisprudência do STJ é assente em admitir como prova hábil à comprovação do crédito vindicado em ação monitória cheque emitido pelo réu cuja prescrição tornou-se impeditiva da sua cobrança pela via executiva. II. Para a propositura de ações que tais é despicienda a descrição da causa da dívida. III. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ – RESP 402699 – DF – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 16.09.2002)

Corrobora ainda com esta corrente mais este julgado, veja-se:

PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO MONITÓRIA – CHEQUE PRESCRITO – DOCUMENTO HÁBIL À INSTRUÇÃO DO PEDIDO – IMPUGNAÇÃO – ÔNUS DA PROVA CONTRÁRIA QUE CABE AO RÉU – REVISÃO FÁTICA – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA Nº 7/STJ – I. A jurisprudência do STJ é assente em admitir como prova hábil à comprovação do crédito vindicado em ação monitória cheque emitido pelo réu cuja prescrição tornou-se impeditiva da sua cobrança pela via executiva. II. Apresentado pelo autor o cheque, o ônus da prova da inexistência do débito cabe ao réu. III. "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial" (Súmula nº 07 do STJ). IV. Recurso especial conhecido pela divergência e desprovido. (STJ – RESP – 285223 – MG – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 05.11.2001 – p. 00116).

Cristalino está que na ação monitória também não prescinde a causa debendi. Claro está então que nos moldes convencionais de cobrança de cheque via judicial a comprovação da causalidade se dá após transcorrido o prazo de dois anos mais o prazo de execução e de apresentação.



5. DAS POSSIBILIDADES DE OPOSIÇÃO DE TERCEIROS NA COBRANÇA JUDICIAL DO CHEQUE



A manutenção das características do cheque subsiste nas mais variadas situações, e a possibilidade de se reduzir a autonomia e abstração será sempre relativa e limitada. A prática empresarial externa a importância de se colocar no anverso do título a descrição da relação negocial que está dando origem, de certa forma vinculando o cheque a realização daquele ato. Este ato não vincula terceiros, porém é uma manifestação legal que poderá obstar uma execução ou ação de enriquecimento ilícito se a parte não houver cumprido com sua parte da negociação. Mamede define de forma segura de que:

“a autonomia e a independência das obrigações cambiárias interpretam-se tendo em vista o princípio da segurança cambiária, ou seja, aplicam-se sempre para preservar terceiros de boa fé.”(2009,p.235)



O objeto do estudo, cheque, que tem como característica a abstratividade e literalidade quando levado às vias judiciais por um terceiro para que se proceda ao recebimento, não raras vezes encontra como defesa a comprovação da causa debendi.

Como foi visto anteriormente a causa debendi não prescinde para a cobrança judicial do cheque em fase cambial e também na Ação de Locupletamento Ilícito (artigo 61, Lei 7.357/85), e terceiro de boa fé não de pode sofrer oposições de exceções pessoais, pois esta é uma característica que o cheque carrega consigo. Ultrapassado a fase contratual, na fase cambial o emitente do cheque somente pode opor-se ao primeiro beneficiário, mas se o título está em circulação não poderá este opor-se ao portador.

No título de crédito cheque, sendo um título abstrato será incólume a qualquer objeção ou exceções referente ao negócio jurídico, justamente por se tratar de um título cambiário abstrato.

O que justifica tal inoponibilidade é que se o terceiro não participou da emissão do título e somente o conheceu na fase da circulação, por presunção este não sabia de qualquer vício ou objeção ao negócio jurídico. O título de crédito cheque poderá ser facilmente impedido de sua circulação. Para tanto basta, ao final do espaço onde se insere o nome do portador, o emitente deve inserir a frase: “NÃO À ORDEM”, em substituição do que já se encontra impresso, “ou à sua ordem”. Com isso expressamente o emitente do título de crédito vedou sua circulação, pois quer este resguardar a contra prestação na qual se originou o negócio jurídico e qualquer circulação deverá ser efetuada através de cessão de crédito (direito civil).

Contribui nesta mesma seara o sapiente Fabio Ulhoa Coelho:



“ O cheque tem implícita a clausula “a ordem”, que significa dizer que se transmite normalmente mediante endosso. O endossante, é claro, torna-se codevedor do título de crédito e está sujeito a execução. Pode-se também incluir a cláusula “não a ordem”, hipótese em que sua circulação será regida pelo direito civil e não cambiário. Nesta hipótese o mestre Mamede explana bem a diferença: As duas diferenças entre a cessão civil e endosso e endosso: O transmitente responde pela solvência do devedor quando endossante( LC Art 21) mas não responde se é cedente, O recebedor está imunizado perante exceções pessoais se endossatário,LC Art 25), mas não está quando é cessionário do cheque.”(2011,p.461)



Quando se trata de vícios em sua criação, seja de incapacidade civil da pessoa, falsidade de identidade ou fraude de identidade, oposição de assinaturas, a objeção ao terceiro de boa fé é clara e legal, pois o emitente não participou da criação do titulo e nem de sua emissão. Neste caso o terceiro de boa fé pode sim sofrer oposições legais ao título, devendo este recorrer a outra pessoa da cadeia de endossos ou sucumbir no prejuízo por ausência de cuidados na receptação do título de crédito.

Portanto a oposição de terceiros deve se fundar na comprovação de conhecimento de má fé dos participantes na negociação e circulação do título ou também se houve vício insanável na fase contratual onde o titular da conta corrente que originou o cheque realmente não o emitiu ou houve erro no negocio jurídico.





CONCLUSÃO



Conclui-se então que o título de crédito cheque é regido por norma que assegura a manutenção de suas características e princípios durante sua circulação, de forma sistemática, mas não engessada.

A legislação pertinente é cristalina ao defender a necessidade da segurança jurídica para a circulação deste título de crédito.

O fato de se ter a circulação do título de crédito cheque como circulador de riquezas faz necessário que se entenda as impossibilidades de se opor ao terceiro de boa fé. A segurança jurídica é necessária para se manter esta circulação sem contudo promover o enriquecimento indevido do emitente, que de forma equivocada busca justiça com as próprias mãos, por via de sustação de cheques ou oposição ao pagamento (contra ordem) deste.

A inoponibilidade ao terceiro de boa fé é o que mantém a segurança jurídica na fase de circulação do cheque. Excluindo as causas que anulam o negócio jurídico em sua fase contratual o emitente não poderá alegar exceções pessoais ao terceiro de boa fé. Em sede de cobrança judicial, a execução o cheque, é titulo líquido, certo e exigível. Em sede de ação de conhecimento denominada Ação de Enriquecimento indevido ou Locupletamento Ilícito previsto no artigo 61 da lei 7.357/61 e na Ação Monitória não há de se falar em causa debendi, ou causa da dívida.

Desta feita o portador pode demandar a cobrança jurídica do título de crédito devolvido pelo banco sem seu devido pagamento, seja por insuficiência de fundos, sustação ou oposição ao pagamento, quando utilizar as medidas jurídicas acima externadas sem que o emitente possa elencar as oposições a este terceiro, que de boa fé adquiriu este título via negociação jurídica.

Tem-se então a situação de que, se o portador é terceiro de boa fé e não tinha conhecimento de qualquer vício ou erro que maculava o ato negocial na fase do contrato, na fase da cobrança judicial do cheque não poderá este sofrer oposições de terceiro. As alegações de ilegalidade da origem da dívida não alcança este terceiro de boa fé, devendo o emitente cumprir a obrigação e se houve alguma razão que este motiva vício ou nulabilidade deverá o emitente ingressar com ação própria contra o outro contratante, excluindo o terceiro de boa fé.

NOVA CONTRIBUIÇÃO PARA SAÚDE NÃO É REMÉDIO, MAS PODE MATAR

Por Raul Haidar

Mais uma vez políticos, juristas e teóricos da tributação se esforçam para encontrar uma fórmula capaz de justificar a cobrança de novo tributo destinado a financiar gastos com a saúde.

Os ignorantes sempre de plantão já tentaram definir o novo assalto, ora chamando-o de imposto, ora de taxa, ora de contribuição para a saúde.

Qualquer estudante do segundo ano de Direito sabe que imposto não pode ter sua receita vinculada, destinando-se a integrar como receita o orçamento do ente tributante, enquanto taxa é tributo que tem serviço ou o exercício do poder de polícia como contrapartida. Assim, a única alternativa no caso é uma contribuição.

Pois há dois problemas que também são a solução: a) a contribuição necessária já existe; b) o reforço orçamentário que a União pode necessitar já está previsto na Constituição.

Todos sabemos que qualquer novo tributo, seja qual for o seu destino, servirá apenas para aumentar uma carga tributária que há muitos anos é sufocante e que coloca o país em situação perigosa perante o comércio internacional, inviabilizando investimentos capazes de colocar o nosso PIB em posição que garanta o desenvolvimento necessário para que 200 milhões de pessoas tenham garantido o seu bem estar.

Mais tributo, a esta altura da economia mundial, não será mais saúde, mas apenas mais do mesmo: corrupção e miséria.

Recentemente a mídia registrou aqui, no estado mais rico da federação, imagens vergonhosas de médicos que assinam o ponto e não trabalham e que possuem vários empregos no mesmo horário, não trabalhando em nenhum deles.

Isso acontece neste estado, sob o olhar atento da imprensa e ao lado de autoridades encarregadas de fiscalizar a roubalheira. Não é razoável supor que nos sertões longínquos do país a coisa possa ser diferente.

O artigo 194 da Constituição inclui o direito à saúde como um dos itens que compõem o conjunto denominado seguridade social. As ações destinadas ao atendimento desses direitos competem aos poderes públicos e à sociedade e também referem-se à previdência e à assistência social.

Portanto, a saúde não é um direito isolado, desvinculado dos demais e seu atendimento não constitui obrigação exclusiva do poder público.

O financiamento de todos esses direitos (saúde, previdência e assistência social) deve ser atendido (CF art.195) por recursos provenientes dos orçamentos públicos e também de contribuições dos empregadores, dos empregados e ainda das loterias.

Como é público e notório o SUS apresenta constantes déficits em todo o país. Assim, são necessárias verbas que lhe sejam fornecidas para cobrir o déficit.

Certamente a primeira medida que se pode e deve implantar é a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto no artigo 153 inciso VII da CF.

Esse imposto foi adiado até hoje desde 1988 e já vigora em vários países do mundo. Durante vários anos argumentava-se que um tributo desse tipo poderia afugentar os possuidores de patrimônios elevados, que poderiam transferir seus bens para outros países. Ora, na atual conjuntura econômica mundial, tal possibilidade é muito remota e praticamente inviável.

Um IGF que incida em patrimônios volumosos (digamos R$ 5 milhões), poderia ser útil para um reforço do orçamento da União e atendimento parcial das necessidades da saúde.

Por outro lado, embora o IPI seja um tributo injusto e que deveria ser extinto — por ser indireto e coexistir com o ICMS — verifica-se na prática comercial que não vem sendo repassados para o consumidor os descontos que recentemente foram concedidos. A União reduziu o IPI dos carros, por exemplo, mas isso não serviu para reduzir o preço dos carros, mas apenas para aumentar os lucros das montadoras e concessionárias. Assim, é razoável que ou bem se cancela a redução do IPI ou se aumenta a Cofins dos veículos.

Claro que também ajudaria ajustar o orçamento à realidade de um país que não consegue pagar os gastos de saúde dos necessitados.

Certamente extinguir pelo menos uma dúzia de ministérios ajudaria um pouco. Os funcionários que lá deixassem de funcionar poderiam ser transferidos para outro lugar qualquer, caso seja impossível colocá-los na rua.

Também seria mais que oportuno um levantamento criterioso do patrimônio público que está abandonado, invadido ou indevidamente na mão de terceiros. Nas principais cidades do país, a começar por São Paulo, há inúmeros prédios ou terrenos que pertencem ao poder púbico (leia-se povo brasileiro) e que foram abandonados há muito tempo. Aqui no centro da cidade de São Paulo há vários prédios nessa situação. Esta é a hora, pois há grande procura para novos empreendimentos no centro.

A possível criação de uma nova contribuição para financiar a saúde viria aumentar a carga tributária que já é insuportável. Tributar as grandes fortunas só atingiria os que são muito ricos e nesse caso o aumento tem fundamento constitucional. Tal aumento poderia autorizar a redução do IPI, este sim um tributo que costuma atingir mais a quem tem menos.

Uma nova contribuição não é remédio, mas pode matar. Pode matar principalmente nossas esperanças de termos alguma coisa que possa se parecer com justiça tributária.

Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

TORTURA NÃO EXIGE DO RÉU CONDIÇÃO DE AGENTE PÚBLICO

Tortura não exige do réu condição de agente público
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação de uma babá a três anos e dois meses de reclusão por violência praticada contra duas crianças. A tortura teria sido praticada com mordidas e golpes de pau, enquanto a mãe trabalhava.

Contrariando a alegação da defesa, o ministro Sebastião Reis Junior disse que, a lei que define o crime de tortura exige apenas que o agente tenha a vítima sob sua guarda, poder ou autoridade, não especificando que o poder tenha de ser estatal. O Ministério Público havia denunciado a babá por tentativa de homicídio duplamente qualificado, mas a juíza da causa desclassificou a conduta para tortura. Em recurso do MP, o Tribunal de Justiça reconheceu a forma qualificada desse delito, mas não restaurou a denunciação original.

Para a defesa, a tortura é crime que só poderia ser praticado por funcionário público ou agente estatal. Mas o ministro Sebastião Reis Júnior divergiu. Segundo o relator, é indubitável que o ato foi praticado por quem detinha sob guarda os menores, conduta que se enquadra no tipo penal previsto no artigo 1º, inciso II, parágrafo 4º, II, da Lei 9.455/1997. Segundo o ministro, a lei não exige para o reconhecimento do crime de tortura, que o agente tenha a vítima sob sua guarda, poder ou autoridade estatal. O inciso II do parágrafo 4º prevê aumento da pena quando o crime é cometido contra criança, adolescente, gestante, portador de deficiência ou maior de 60 anos.

Quanto à classificação para a forma qualificada de tortura feita pelo TJ, a defesa afirmou que configuraria julgamento além do pedido, na medida em que o MP pretendeu apenas restaurar o homicídio tentado. Mas o relator também discordou. Para o ministro Sebastião Reis Júnior, se tivessem surgido durante o processo novas provas sobre circunstância elementar não descrita na denúncia, seria o caso de devolvê-la ao MP para aditamento. Nessa hipótese, caberia manifestação da defesa sobre a nova imputação.

Entretanto, a denúncia registrou expressamente que o crime foi cometido contra crianças de três e quatro anos. Assim, não houve imputação de fato novo, foi apenas atribuída definição jurídica diversa, com a inclusão da causa de aumento da pena, com base nos fatos já narrados na peça acusatória, circunstância que configura emendatio libelli, razão por que se afasta o alegado prejuízo advindo à defesa, concluiu.

PATERNIDADE CONTESTADA - ANULAÇÃO EXIGE PROVA DE COAÇÃO OU INDUÇÃO A ERRO

A anulação de registro de nascimento, por meio de ação negatória de paternidade, só é possível quando há prova clara e incontestável de vício de consentimento, como coação irresistível ou indução a erro. O ministro Sidnei Beneti, em voto acompanhado de forma unânime pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, usou esse argumento para negar recurso de pai que pretendia anular o registro do filho por ele assumido previamente.

Ao pedir a anulação do registro de nascimento, o autor da ação declarou que sempre soube que não era o pai biológico da criança, mas mesmo assim concordou em registrá-la como sua por pressão de seus próprios pais – que acabaram criando o neto adotivo, pois o autor trabalhava em outra cidade, e até o presentearam com carros e terra, conforme registra o processo.

Em 1999, pai e filho se submeteram a exame de DNA, que confirmou não haver vínculo biológico entre eles. O pai só entrou com a ação anulatória quatro anos depois. O Tribunal de Justiça de Goiás negou a anulação, considerando que a paternidade foi reconhecida voluntariamente no passado e que não havia no processo prova suficiente da alegada coação psicológica.

Para o tribunal estadual, a adoção – mesmo a socioafetiva ou “à brasileira”, quando as pessoas simplesmente registram filhos que não são seus – é irretratável, com base nos princípios da dignidade humana e da efetividade.

Em recurso especial ao STJ, o pai adotivo alegou que o TJ-GO, mesmo admitindo que se tratou de uma “adoção à brasileira”, não reconheceu a falsidade do registro. E insistiu na tese de que o registro deveria ser anulado por vício de consentimento, uma vez que ele teria registrado a criança sob coação.

Porém, para o relator do caso, ministro Sidnei Beneti, as alegações do pai não procedem. Ele observou que, segundo concluiu o TJ-GO ao analisar as provas do processo, o exame de DNA realmente afastou a paternidade biológica, porém não ficou demonstrado que o registro foi feito sob coação. Diante disso, o tribunal estadual decidiu conforme orientação estabelecida pela 3ª Turma do STJ em julgamentos anteriores: “O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento.”

De acordo com os precedentes citados pelo relator, quando alguém que não é pai biológico registra voluntariamente uma criança como sua, esse registro até pode ser anulado no futuro, desde que haja prova convincente de que a pessoa foi induzida a erro ou coagida a reconhecer a paternidade. Sem essa prova, não há como desfazer um ato realizado de vontade própria, em que a pessoa, mesmo sabendo não haver vínculo biológico com o menor, aceitou reconhecê-lo como filho.

“A conclusão a que chegou o tribunal estadual decorreu da análise das provas constantes nos autos, que formaram o convencimento acerca da ausência de vício de consentimento quanto ao registro da paternidade. Rever tal ponto e declarar existente o defeito propalado pela parte necessitaria de incursão no conjunto probatório dos autos” – afirmou o ministro, lembrando que essa revisão de provas não é possível no julgamento de recurso especial. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

O PODER NAS MÃOS DE QUEM DOMINA TECNOLOGIA E INTERNET

Por Patricia Peck Pinheiro

A sociedade brasileira avançou no uso de tecnologia nos últimos anos e grande parte das regras para estas novas relações foram criadas em âmbito privado, por contratos, termos de uso ou até mesmo mecanismos de auto-regulamentação. No entanto, chegamos a um patamar em que para dar o próximo passo evolutivo, para o crescimento sustentável do Brasil Digital, há necessidade de se preencher algumas lacunas jurídicas. Só o Legislativo tem alçada para tal.

Não sou a favor de que existam leis para Internet em si, mas a mesma já deixou de ser apenas mais um meio, uma mídia, e passou a ser o ambiente principal de relacionamento, realização de atividades, obrigações, responsabilidades e transações para muitos indivíduos e instituições. A interatividade, somada à infra-estrutura viabilizada pela banda larga, permite que o mundo virtual, na verdade, ocupe o lugar do mundo real. A tal ponto que a ONU elevou o direito de acesso à internet a uma garantia de direito digital do indivíduo. Sem isso, ele está “fora do mundo”, fica excluído e marginalizado, sem opção inclusive para se desenvolver.

Por isso, a tramitação mais rápida de projetos de lei como o PL 84/99, o Marco Civil da Internet, a nova Lei de Direitos Autorais, a regulamentação da atividade de Compra Coletiva, ou mesmo normas que permitam melhorar a segurança da informação no nível público, e combater crimes eletrônicos, terrorismo digital e guerra cibernética. Não pode levar mais de 10 anos para tramitar projetos de lei sobre o tema de Direito Digital. Além disso, o Legislativo precisa estar mais capacitado para enfrentar temas técnicos, o que exige, inclusive, uma redação mais aprimorada das leis.

Tem crescido os ataques a sites de Governo, principalmente porque os mesmos são extremamente vulneráveis, não foram criados dentro de uma estratégia de plano de contingência e continuidade, visto que no início eram meramente institucionais. Mas, evoluíram para se tornarem verdadeiros ambientes de governo eletrônico, prestando serviço essencial ao cidadão que não pode ficar indisponível, não pode sofrer interrupção, muito menos vazamento de dados.

Apesar de estar em vigor o Decreto 3505/2000, uma pesquisa feita pelo Tribunal de Contas da União em 2010 mostrou que a maioria das instituições públicas ainda não possui política de segurança da informação implementada, com campanha de conscientização realizada. Há a nítida impressão de que isso ainda não ocorreu, passados mais de 10 anos, visto que aumentar o nível de monitoramento nos ambientes da administração pública pode vir a revelar condutas indevidas do próprio gestor público, e que ficariam então mais expostas, além da dificuldade de dar continuidade neste tipo de tema que exige um trabalho permanente e não se encerra com um mandato.

Muitos países já têm discutido sobre qual o limite que distingue a prática de um Crime Eletrônico comum e quando o mesmo se torna um ato de Cyberterrorismo ou mesmo de Guerra Cibernética, visto que o ataque intencional a site de governo com objetivo de retirar do ar e furtar dados é considerado de altíssima gravidade. No Brasil foi criado um Núcleo de Defesa Cibernética, a cargo do Exército e do Ministério da Defesa, conforme portarias 666 e 667 de 2010, mas o trabalho ainda está no início, deveria ser acelerado. Vivemos o 5º. poder, que está nas mãos de quem domina tecnologia e internet. O Governo Brasileiro tem que ter política para tratar risco digital especificamente. Hoje, cada Órgão trata do seu jeito.

No tocante ao aspecto de direito internacional digital, a Lei 10.744/2003, trata em seu artigo 2º de que é responsabilidade da União tratar sobre atentados terroristas e atos de guerra, e pela leitura seria possível enquadrar a conduta tanto no § 3o “entende-se por atos de guerra qualquer guerra, invasão, atos inimigos estrangeiros, hostilidades com ou sem guerra declarada, guerra civil, rebelião, revolução, insurreição, lei marcial, poder militar ou usurpado ou tentativas para usurpação do poder” como no § 4o “entende-se por ato terrorista qualquer ato de uma ou mais pessoas, sendo ou não agentes de um poder soberano, com fins políticos ou terroristas, seja a perda ou dano dele resultante acidental ou intencional”. O próprio Pentágono declarou que ataque cibernético será considerado ato de guerra.

O que pode ser feito, em caráter emergencial, para melhorar o nível de proteção do ente público e também dos dados dos cidadãos brasileiros, que devem ser cuidados pelo mesmo são: revisar nível de segurança da informação dos sites de governo, melhorando programação dos códigos fontes e criptografando bases de dados; implementar plano de contingência e continuidade e demais medidas para evitar interrupção; realizar monitoramento permanente do ambiente, podendo usar estratégia “honey pot” para pegar um ataque logo no início e identificar seu autor; criar policiamento online (não apenas a delegacia de crimes eletrônicos); aprovar leis que melhorem tipificação e guarda de provas, devem trazer os novos tipos de Crime Eletrônico, Cyberterrorismo e Guerra Cibernética, definir modelo de identidade digital obrigatório e prazo mínimo de guarda de dados de conexão e tráfego por provedores de internet, email, páginas de conteúdo, redes sociais; implementar campanha de conscientização de segurança da informação pública, voltada aos servidores e ao cidadão, orientando sobre proteção de senha, bloqueio de estação de trabalho, necessidade de desligar o equipamento quando não estiver sendo usado e de manter atualizados os softwares de antivírus. Inclusão digital com educação digital é fundamental para prevenção.

Patricia Peck Pinheiro é advogada especialista em Direito Digital, sócia fundadora da Patricia Peck Pinheiro Advogados.