Entrevista concedida pelo filósofo Michael Sandel ao jornalista Jorge Pontual, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio
é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por
assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às
3h30, 11h30 e 17h30.
Jorge Pontual –
Olhando à distância, a vida parece ter um rumo. Mas dentro do fluxo
constante de pessoas e ideias, alguns momentos podem mudar tudo. Tomamos
milhares de decisões e a partir delas construímos nossas histórias,
nossas identidades e nossa sociedade. A ação, ou a falta dela, determina
nosso futuro. Como então separar o que é certo do que é errado? Na
politica, no trabalho, na filosofia, na vida.
Há trinta anos no curso
Justiça,
na Universidade de Harvard, o filósofo Michael Sandel usa questões do
dia-a-dia, para discutir com os alunos os valores éticos. O curso virou
livro e uma série de vídeos, que se tornou um dos maiores sucessos na
internet, vista por milhões de pessoas em todo o mundo. O curso é
pioneiro no projeto visionário de Sandel, a globalização da educação.
Ele vem ao Brasil em agosto, e recebeu o
Milênio em Harvard para discutir política, corrupção, desigualdade social, democracia e justiça.
Leia a entrevista:
Jorge
Pontual — A principal coisa que está acontecendo no Brasil é uma classe
média emergente. Dezenas de milhões de pessoas que eram pobres hoje são
da classe média. Nós temos muito orgulho disso. Mas, ao mesmo tempo, a
profunda desigualdade que existia no Brasil ainda existe. Nós temos um
número muito pequeno de pessoas muito ricas, que é como se morassem em
um país diferente. Podemos dizer que não há noção de comunidade. O que
pensa disso?
Michael Sandel — Certo. A desiguldade entre
ricos e pobres é uma das questões centrais da justiça. E temos visto, em
vários países, inclusive nos Estados Unidos, uma desigualdade crescente
entre ricos e pobres. Uma das maneiras de lidar com isso, uma das
correntes, é a posição individualista simples do
laissez faire,
do livre mercado, que diz: “Se você compra e vende suas capacidades e
seus bens no livre mercado, você tem o direito de ficar com tudo o que
ganhar,
e é errado o governo taxar seu tão suado dinheiro”. Essa é uma visão.
Mas há outra corrente que diz que não, que isso não é verdade, que as
desigualdades muitas vezes refletem que a injustiça se estabelece desde o
início de nossa vida em sociedade. Algumas pessoas nascem em famílias
afluentes, outras nascem em famílias pobres. Algumas têm ótimas
oportunidades de ensino, outras têm pouca ou nenhuma chance de ter um
bom ensino. Portanto, essa segunda corrente diz que, ao pensar em
justiça e desigualdade, devemos perguntar: “Supondo que não saibamos
como será seu futuro na sociedade... Você não sabe se será rico ou
pobre, forte ou fraco, saudável ou doente. Então, com que princípios de
justiça você concordaria se não soubesse que futuro teria?” Essa é a
segunda corrente, e ela leva a um sistema mais igualitário. E a terceira
corrente, que eu discuto também, se preocupa com essa grande lacuna
entre ricos e pobres, mas por uma razão diferente, e não só pela
preocupação com a injustiça para com os de classe mais baixa, que sofrem
com suas desvantagens, mas também pela preocupação com a comunidade, o
que traz de volta o que você mencionou há pouco. De acordo com essa
corrente, a terceira corrente, se tivermos uma lacuna grande demais
entre ricos e pobres, será muito mais difícil sustentar uma noção de
comunidade, a noção de que a vida social é um projeto comum que envolve
uma cidadania compartilhada, na qual os cidadãos se sentem comprometidos
uns com os outros porque estão comprometidos com um projeto comum.
Então, há essa terceira corrente que se preocupa com a desigualdade a
partir do ponto de vista da coesão social, da solidariedade e da
comunidade.
Jorge Pontual — Outro grande problema do
Brasil é a corrupção. No ano passado, em 2011, não sei quantos
ministros, talvez seis ou sete, foram exonerados por causa de escândalos
de corrupção. O governo está tentando fazer uma limpeza, mas isso está
em toda a parte. Os brasileiros são céticos com relação à política.
Todos pensam que todos os políticos fazem isso. E, aqui, a influência do
dinheiro na política tem aumentado. A próxima eleição será a primeira
depois que a Suprema Corte autorizou doações ilimitadas para as
campanhas politicas por parte das empresas. O que você diz sobre isso?
Michael Sandel — Isso remete à questão do que é
a politica como vocação, como chamado. Qual é o propósito da política?
Muitas vezes, quando a corrupção está espalhada e o ceticismo é alto, há
um sentimento generalizado de que a política se resume a interesses
próprios. Por isso, podemos não gostar, mas somos capazes de entender
quando agentes públicos tratam suas funções como se servissem para
deixá-los ricos. Na verdade, o que isso reflete é a perda do sentimento
de virtude cívica, de responsabilidade pública. E acho que um dos
maiores desafios para o Brasil, para os EUA, para qualquer sociedade
democrata, é cultivar e desenvolver, entre os cidadãos em geral, a noção
de que a vida pública tem sua dignidade e sua importância, porque é a
expressão do que é ser cidadão: ser capaz de ter um sistema de governo
que pertence a todos nós, que não pode ser comprado por interesses
específicos. Hoje, os EUA estão diante de uma campanha presidencial em
que uma quantidade enorme de dinheiro está sendo doada aos dois lados, e
grande parte desse dinheiro não tem uma finalidade específica. Nem os
próprios candidatos são capazes de controlar para onde vai esse dinheiro
exatamente. E isso também é um tipo de corrupção, ainda que seja legal.
Nossa Suprema Corte, como você mencionou, decidiu recentemente, há
cerca de dois anos, derrubar as restrições que limitavam o financiamento
de campanha feito com dinheiro privado, e estamos vendo o resultado
disso. E esse resultado é que essas campanhas políticas estão inundadas
de dinheiro, um dinheiro que não precisa ter um fim específico, e por
isso só já é um tipo de corrupção, embora seja algo legal. Isso corrompe
o que a virtude cívica e a vida cívica deveriam ser. É uma violação dos
ideais mais profundos, na minha opinião, da democracia. A ideia de toda
a democracia é dar a todos os cidadãos um poder de palavra, uma opinião
de como são governados. Então, eu espero que, no caso do nosso sistema,
nós consigamos encontrar uma maneira de limitar o papel do dinheiro nas
campanhas eleitorais. Quanto à questão mais ampla do ceticismo, nós
precisamos criar um sentimento de que o governo democrático pertence a
todos e de que há uma responsabilidade cívica compartilhada para tanto.
Mas está se tornando cada vez mais difícil desenvolver e promover isso
em nossa sociedade atual. Acho que é por isso que as pessoas estão tão
frustradas com a política.
Jorge Pontual — Uma coisa
horrível que acontece aqui — e o Brasil, até agora, está livre disso — é
o nível do discurso político. As acusações, a polarização ideológica. É
como se o outro lado fosse o Mal. Eu moro nos EUA há 16 anos, e vi isso
acontecer durante esse período de tempo. Quando eu me mudei para cá,
não era assim. Qual é sua solução para isso?
Michael Sandel — Certo. Bem, é verdade, eu
concordo com você que nossa política, nosso discurso político, consiste
em grande parte, de acusações, e há pouquíssimas argumentações sérias
sobre os grandes problemas. E o discurso democrático deveria tratar
disso. Eu acho que nossa política se tornou muito gerencial e
tecnocrática e focada demais em questões econômicas limitadas. Isso tem
deixado de lado questões genuinamente politicas, inclusive questões
éticas e questões espirituais que surgem no debate político e, muitas
vezes, é a direita religiosa que quer levar questões ligadas aos
valores, à moralidade e à religião, para a política, mas a esquerda ou
os liberais dizem: “Não, isso é intolerância”. Eu acho que o discurso
público democrático deveria acolher debates morais e espirituais e que
os cidadãos não deveriam ser forçados a deixar para trás suas convicções
morais e espirituais quando entram na arena pública. Não estou dizendo
que todos irão concordar se houver um debate mais robusto, do ponto de
vista moral, porque as pessoas discordam quanto a grandes questões
éticas, a questões morais e espirituais. Mas eu acho que é um erro
fingir que a política possa ser neutra em relação a essas importantes
questões.
Jorge Pontual — Dê um exemplo de uma questão que interesse a todos.
Michael Sandel — Bem, a área que eu gostaria
de começar seria uma questão que discutimos antes: o que fazer com
relação ao aumento da desigualdade? Você sabe qual é o percentual da
riqueza, nos EUA, que está nas mãos do 1% mais rico? Qual seria seu
chute?
Jorge Pontual — 40%?
Michael Sandel — Exato! Você está muito bem informado.
Jorge Pontual — Eu li seu livro.
Michael Sandel — E Warren Buffett recentemente
disse que paga proporcionalmente menos impostos que sua secretária.
Essa é uma questão econômica: “Qual deveria ser a alíquota dos
impostos?” “O que deveríamos fazer sobre a distribuição de renda?” Mas
não é apenas uma questão econômica. É uma questão de justiça e, para
debatê-la como uma questão de justiça, apropriadamente, devemos ouvir
pessoas com diferente visões éticas, diferentes morais e tradições
religiosas, para tentar falar sobre como é uma sociedade justa. O que
temos muito nos EUA é a tendência a pensar que discutir moralidade e
valores na política resume-se a falar de aborto e casamento homoafetivo.
Esses são dois temas que surgem quando pensamos em trazer moralidade
para o debate político.
Jorge Pontual — E aí não há interesse comum.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Há uma polarização.
Michael Sandel — A tendência é essa. Mas acho
que deveríamos nos dar conta de que os grandes problemas econômicos que
enfrentamos estão relacionados à justiça, a uma boa sociedade, e não
podemos responder a essas questões sem falar de tradições morais, éticas
e espirituais. As pessoas irão discordar, mas pelo menos aprenderemos a
ter o hábito de debater juntos, em público de ouvir um ao outro, de
tratar até mesmo tradições com as quais podemos discordar de uma maneira
respeitosa. Do contrário, não creio que trataremos a questão da
desigualdade. A menos que façamos dela uma questão moral, que percebamos
que é uma questão de justiça, e que todos sejam livres para trazer suas
convicções morais e espirituais sobre essas questões fundamentais.
Jorge
Pontual — Isso foi o que o presidente Obama fez durante a sua campanha:
ele introduziu essa discussão acerca da moralidade no discurso
político, não foi?
Michael Sandel — É interessante. Ele fez isso
durante a campanha e isso foi um rompimento com o que muito liberais e
democratas anteriores haviam feito. Eles tendiam a ser mais
tecnocráticos e a se sentir desconfortáveis com questões morais e
espirituais.
Jorge Pontual — Tradicionalmente, eles não falam de religião e moral.
Michael Sandel — E a força de Obama, que veio
da tradição liberal e progressista, foi dizer: “não podemos ignorar as
questões morais e espirituais”. Fazer isso é um engano, pois assim
deixamos os recursos morais mais ricos e poderosos nas mãos dos
conservadores religiosos apenas. Ele estava certo sobre isso, e não só
sobre isso. Acho que foi isso que o tornou atraente. As pessoas querem
que a vida pública trate de questões importantes e, às vezes, de grandes
questões morais. Ele fez isso com grande sucesso durante a campanha,
mas não foi tão bem-sucedido na hora de transferir esse idealismo moral e
cívico para o governo, para a presidência. E o grande desafio dele
agora é se reconectar com esse grande vocabulário moral, pois é isso que
move, impressiona e inspira as pessoas.
Jorge Pontual —
Talvez seja porque o poder sempre requer um meio-termo, e você acaba
abrindo mão dos seus valores morais também. Que outro presidente
americano foi um grande líder moral? Lincoln?
Michael Sandel — Lincoln é um bom exemplo. Se
analisar os discursos dele, seus famosos discursos, ele era muito
sintonizado com as questões morais e espirituais da política. É por isso
que nos lembramos dele. Então, eu acho que a verdadeira liderança
política requer que os líderes políticos não só adotem a linguagem moral
e espiritual na política, como também estimulem nos cidadãos a
capacidade de fazer isso e, de certo modo, convidar os cidadãos a se
tornar filósofos. Há uma sede disso. Porque, com frequência, os
políticos não nos permitem fazer isso.
Jorge Pontual — É
muito emocionante assistir às suas palestras e ver aqueles jovens se
levantando e falando de coisas das quais as pessoas normalmente não
falam. O que é um bem maior? O que é a liberdade? E o fato de você levar
até eles Aristóteles, essa ideia do propósito maior. Há uma palavra...
Michael Sandel — Sim,
telos.
Jorge Pontual — Fale sobre isso. Como os jovens se relacionam com isso?
Michael Sandel — Antes de mais nada, eu quero
apresentar aos estudantes e aos leitores do livro as principais ideias
filosóficas que informam os políticos contemporâneos. Na maior parte das
vezes, há um choque entre os que acreditam em livre mercado, direitos
de propriedade, ideias libertárias e ideias utilitárias — como aumentar o
PIB — e aqueles que dizem que precisamos ter um estado de bem estar
social decente, que respeite os direitos dos pobres e garanta que eles
tenham uma rede de proteção. São debates que todos já conhecem: mais
impostos, menos impostos, mais regulação pelo governo, menos regulação
pelo governo. Esses debates todos conhecem. Mas eu quero ir além desses
debates para lembrar aos estudantes de que há uma outra maneira de
enxergar a vida pública. Aristóteles, com sua ideia do
telos, ou “propósito”, dizia que os
telos
da comunidade política não é primordialmente econômico, não é apenas
outra maneira de conseguirmos o que queremos, enquanto consumidores
individuais. Isso é um mercado. Pode ser um mercado grande, pode ser um
mercado global, mas não é uma comunidade política. E a razão de não ser,
nas palavras dele, é porque a comunidade politica deve servir a algo
maior, deve servir a uma vida boa. A razão pela qual nos reunimos em
comunidades políticas é para nos melhorar, para elevar nosso caráter,
para aprender a debater uns com os outros, para exercitar nossa
capacidade de julgamento. Esse é o
telos para Aristóteles, o
telos
de uma comunidade política, e está ligado à nossa natureza humana, ao
que é ser um ser humano. Essa ideia é verdade. Não poderíamos nos
realizar completamente como seres humanos vivendo uma vida puramente
privada, como consumidores, pois a vida é muito maior do que isso. Os
seres humanos se moldam ao se comprometerem uns com os outros, em uma
vida em comum, deliberando, compartilhando regras. Isso afeta nosso
caráter, nossa capacidade de desenvolver um juízo de valor, preocupações
e um sentimento de responsabilidade mútua para com os outros. Com isso,
voltamos ao que eu sugeria antes. Eu não acho que podemos ou devemos
separar questões relativas à vida com conforto de questões políticas e
de como devemos governar a sociedade.
Jorge Pontual — Isso
me lembra da ideia do conceito narrativo do ser, de que somos parte de
uma narrativa maior. Minha narrativa pessoal é parte de uma narrativa
maior. Explique isso.
Michael Sandel — Certo. Isso é abordado ao fim
do livro, ao fim das palestras. Há uma tendência a achar que a
liberdade maior, ser um ser humano livre, é ser capaz de me definir
sozinho, sem referência ao meu passado, às minhas tradições, à minha
criação, à minha cultura.
Jorge Pontual — Um ser abstrato.
Michael Sandel — Um ser abstrato, um “eu”
abstrato. O indivíduo puramente autocriado. Essa ideia tem um lado que
nos confere muito poder, mas acho que é equivocada. Eu acho que é uma
ilusão. O que ela não tem, como você disse, é o aspecto narrativo da
identidade. Quem eu sou é algo inseparável da minha história, da
narrativa da minha vida, que me posiciona no mundo. Relativamente a um
passado, a uma tradição, a uma família, um bairro, uma comunidade, um
país, em suma, a uma sociedade global. Mas as narrativas, as histórias
dessas características, dessas identidades, são parte do que me torna
quem eu sou. Esse é o conceito narrativo do ser, que eu privilegiei como
uma espécie de contrapeso ao individualismo radical para o qual estamos
caminhando nesta sociedade voltada para o consumo e o mercado.
Jorge
Pontual — Você alerta seus estudantes de que a filosofia moral, toda
essa discussão, é perigosa, pois após questionar o que é familiar, você
nunca mais será o mesmo.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Depois você começa a se perguntar o que o motiva.
Michael Sandel — Certo. É verdade. E os alunos
me procuram após a aula ou até anos depois e dizem: “isso foi
exatamente o que aconteceu comigo”. Quando você começa a questionar as
certezas estabelecidas e convenções, a vida nunca mais será a mesma.
Esse é o perigo de se estudar filosofia política assim, mas também é a
beleza e a felicidade disso. Por que o que significa, no final das
contas, a meu ver, ser um ser humano, é questionar, é não se acomodar
com relação às nossas certezas. Filosofia é isso. Então, esse
desassossego, esse desconforto, são o primeiro passo da educação, são o
primeiro passo a ser dado na educação cívica e, nesse sentido, o
primeiro passo para quem aspira a uma vida boa.