terça-feira, 31 de janeiro de 2012

CNJ nasceu para extirpar tumores

 Por Ophir Cavalcante Júnior
O ato público que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fará nesta terça-feira (31/1) integra o esforço da entidade de congregar a sociedade civil organizada em defesa dos pressupostos que transformaram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), símbolo mais eloquente do esforço para enfrentar a crise no Judiciário: a coordenação, o planejamento, a supervisão administrativa, enfim, a fiscalização, que não pode ser genericamente tratada como controle, mas sim como legítimo e democrático direito de proteger um dos pilares do Estado democrático de Direito.
Mas objetiva, também, sensibilizar os senhores ministros do Supremo Tribunal Federal para que seja assegurada, no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, que tem como ponto central definir a amplitude de atuação do CNJ, a competência concorrente, e não subsidiária, daquele órgão com relação às Corregedorias de Justiça. Estamos convencidos de que isso pode ser feito sem a necessidade de incitar atitudes revanchistas ou irresponsáveis, nem generalizar as denúncias de condutas criminosas que, acreditamos, são pontuais e localizadas. Queremos tão somente que continue sendo o CNJ farol da Justiça, conquista republicana em perfeita sintonia com os interesses do povo, a quem em última análise a democracia presta contas.
É preciso compreender que o CNJ não nasceu para promover uma caça às bruxas, nem perseguir ninguém. Ele nasceu para planejar e extirpar alguns tumores que ameaçavam se alastrar por todo o corpo do Judiciário. Tentativas de diminuir o seu poder, sobretudo no que se refere à competência de realizar inspeções em tribunais, fiscalizar e punir condutas impróprias de magistrados, refletem o incômodo que essa nova realidade impôs a alguns setores pouco habituados a agir com transparência. Mais fácil seria se o CNJ fosse um órgão doente, burocrático, e que seus membros aguardassem, com servil paciência, os relatórios e prestação de contas produzidos na velocidade e nos termos que cada corte julgar conveniente.
Nunca se pretendeu retirar a competência dos controles internos existentes, porém devemos lembrar que foi justamente em decorrência de sua duvidosa eficácia que já se promoveu, no passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no âmbito do Legislativo, submetendo o Judiciário a um penoso processo de investigação. Não queremos que isto se repita.
O CNJ tem sido, ao longo dos anos, muito mais do que um mero órgão disciplinar. Sua ação se estende a outros campos, com sucesso. Na área do sistema carcerário, fez o que nunca ninguém fez no Brasil: levantou a vida de milhares de presos e promoveu a correção de sistemas medievais, como prisões sem o mínimo respeito aos Direitos Humanos ou penas vencidas há meses ou anos.
Desde a sua instalação, em 2005, a Justiça passou a trabalhar com estratégias de planejamento, metas de produtividade e projetos de informatização e incorporação da instituição à Internet. O CNJ passou a ter um papel visionário, antevendo as demandas futuras de uma sociedade cujo acesso à Justiça começa a se alargar.
Em um País que registrava, até recentemente, 40 milhões de processos em fase de execução, algo precisava ser feito para dar celeridade à Justiça. Partiu do CNJ a iniciativa das metas, prevendo a redução de pelo menos 10% do acervo de processos na fase de cumprimento e execução. Partiu também do CNJ, com amplo apoio da OAB, a norma acabando com o nepotismo no Judiciário.
O CNJ também pôs à mostra o muito de errado que existe em alguns tribunais país afora —nem todos, claro, pois há honrosas exceções. Mas em alguns as coisas andavam tão mal que medidas drásticas eram necessárias.
Por tudo isso, a OAB sente-se no dever de defender a independência do CNJ como forma de aprimorar a Justiça, consolidar o regime democrático e fortalecer os direitos individuais e coletivos.
Ophir Cavalcante Júnior é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

IMPACTO DAS RESOLUÇÕES DA ANS SOBRE CONSUMIDORES

Por Isabella Menta Braga
Em meados de dezembro entrou em vigor mais uma Resolução da ANS 259, que obriga as operadoras de planos de saúde a garantir aos consumidores a marcação de consultas, exames e cirurgias nos prazos máximos ali definidos, que vão de três a 21 dias, de acordo com o procedimento.
Além disso, a resolução prevê a garantia de transporte do consumidor ao local da prestação do serviço, no caso de não haver rede credenciada em seu município e nos municípios limítrofes. Nos casos de urgência, a operadora deverá oferecer o atendimento no município onde foi demandada ou se responsabilizar pelo transporte do beneficiário até o credenciado mais próximo.
A punição pelo descumprimento da norma também veio prevista: adoção de medidas administrativas, tais como a suspensão da comercialização de parte ou de todos os seus produtos e a decretação do regime especial de direção técnica, inclusive com a possibilidade de afastamento dos dirigentes da empresa.
Pois bem. O objetivo da norma não só é nobre. Ela se destina a garantir que aquele que contrata plano de saúde — consumidor — tenha acesso ao que está previsto no ajuste e, principalmente, visa a garantir aos beneficiários maior eficácia na prestação do serviço, sempre privilegiando o direito à saúde, previsto constitucionalmente.
A grande questão é: para viabilizar o atendimento à nova resolução, as operadoras de planos de saúde terão de credenciar maior número de especialistas, além de, no caso de não contarem com unidade de atendimento em determinado município (e isso ocorre em muitos casos), arcar com o transporte do consumidor. E quem arcará com esses novos encargos atribuídos às operadoras?
Considerando que as empresas de planos de saúde exercem atividade econômica lucrativa, há apenas duas respostas para o questionamento acima: ou os novos gastos serão repassados aos consumidores ou ocorrerá a decadência da qualidade do serviço prestado, com a contratação, pelas seguradoras, de profissionais de menor capacidade. E também adquirindo-se instrumentos e equipamentos de menor qualidade. Em ambos os casos quem sofrerá diretamente será o consumidor.
Chega a ser um raciocínio totalmente ilógico, mas, infelizmente, real: os consumidores poderão ser prejudicados pela entrada em vigor de uma regra que busca, unicamente, garantir que lhes sejam prestados os serviços por eles contratados e pagos. Estranho, não?
Apesar de o impacto aqui relatado ser mera especulação, tendo em vista que ainda não houve tempo hábil para verificar como irão se comportar as operadoras de plano de saúde, é salutar que a discussão seja colocada e que todos estejam atentos.
Também é bom lembrar que é cada vez menor o número de profissionais que tencionam cadastrar-se em planos de saúde, visto o valor irrisório que lhes é repassado pelos procedimentos executados. Ou seja, como não se pode obrigar o especialista a fazer parte do rol de médicos que atende a determinada operadora, dever-se-á oferecer-lhe uma contrapartida mais vantajosa. E, novamente, estamos falando de dinheiro que deverá ser gasto e que poderá ser repassado ao consumidor.
Outra discussão já conhecida que vem à tona mais uma vez é o fato de que, para se ter um tratamento de saúde digno e completo, todos estão totalmente expostos e submetidos às imposições dos planos de saúde, já que a função primária do Estado, que seria garantir o direito à saúde a todos os cidadãos, de há muito foi deixada de lado.
Diante de todas essas ilações e das preocupações que rodeiam a questão da saúde brasileira — seja ou não por meio de planos privados —, não resta alternativa aos consumidores senão aplaudir a preocupação estatal em garantir, através dessa nova resolução da ANS, prazos de atendimento e a presença de profissionais em todos os municípios, fechando os olhos ao fato de que isso não passa do que foi contratado.
Isabella Menta Braga é advogada do escritório Valentim, Braga & Balaban

sábado, 28 de janeiro de 2012

FRAUDE E DESCAMINHO: A prática de interposição fraudulenta e a denúncia penal por descaminho

Por André Oliveira Brito

No conceito de interposição fraudulenta, o significado de “interpor”, verbo transitivo, é “pôr entre”. Já a fraude representa todo artifício empregado com o fim de enganar uma pessoa e causar-lhe prejuízo.   
Destarte, tomando como base o simples significado das palavras, é possível concluir que interposição fraudulenta é situação fática em que determinado ente fica numa posição de “intermediário” (importador ostensivo[1]), com o objetivo de esconder outro agente (importador de fato ou encomendante predeterminado[2]), causando prejuízo ao erário ou dificultando os controles administrativos das Aduanas.
A interposição fraudulenta pode ser presumida ou real.A hipótese de interposição fraudulenta presumida é observada nos casos em que o importador ostensivo não prova a origem dos recursos empregados em operações de comércio exterior. Nesta situação, é licito[3] ao agente fiscal presumir a existência de um sujeito oculto que supostamente financiaria a importação e que ao final seria o destinatário dos bens importados.
A segunda hipótese é aquela em que o agente fiscal detecta o real beneficiário da importação, seja por vinculação de créditos em conta corrente para arcar com a operação internacional, seja pelo fato da mercadoria ter sido adquirida para atender a encomendante predeterminado. Também é usual detectar o real beneficiário (ou importador de fato) quando constatado que o importador ostensivo não possui conhecimento acerca da negociação internacional, demonstrando que os contatos foram feitos por terceiro (o sujeito oculto), inclusive no que diz respeito a preço, prazo e forma de pagamento, mas os recursos eram próprios.
Nesta hipótese, tem-se que o importador ostensivo atuou como mero prestador de serviços, cedendo seu nome. Cabe destacar que a importação para encomendante predeterminado não é ato ilícito, desde que realizada dentro dos parâmetros legais estabelecidos pela Receita Federal, nos termos da IN/SRF nº 634/2006. Na importação por encomenda, o encomendante, que deve ser declarado previamente ao fisco, assume a condição de responsável solidário em relação ao imposto, consoante previsão legal insculpida pelo artigo 32, p. único, “d” do DL nº 37/66[4].
Impende salientar, por relevante, que o artigo 13 da Lei nº 11.281/2006[5] equiparou o encomendante à situação de estabelecimento industrial.
Destarte, nos termos do RIPI, em razão da equiparação à industrial, fica o encomendante obrigado ao pagamento do IPI na saída dos produtos importados.
Art. 24.  São obrigados ao pagamento do imposto como contribuinte:
III - o estabelecimento equiparado a industrial, quanto ao fato gerador relativo aos produtos que dele saírem, bem como quanto aos demais fatos geradores decorrentes de atos que praticar (Lei nº 4.502, de 1964, art. 35, inciso I, alínea “a”); e
Este, em síntese, o grande e teórico prejuízo advindo da prática de interposição fraudulenta: quebra da cadeia de IPI.
E assim, considerando o artifício fraudulento para iludir o recolhimento de tributos, nasce, segundo tese fiscal recorrente, a possibilidade do fato ser caracterizado como descaminho, nos termos do art. 334 CP.
II – O não recolhimento do IPI
Tem-se que entre as obrigações principais iludidas através do cometimento da interposição fraudulenta, encontra-se o recolhimento do imposto sobre produto industrializado – IPI.
O IPI, por ordenamento constitucional, é um tributo de incidência não-cumulativa, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores (CF/88, art. 153, p. 3º, inc. II).
De acordo com a norma vigente, o importador equipara-se a estabelecimento industrial, sujeitando-se ao recolhimento do IPI por ocasião do desembaraço aduaneiro da mercadoria.
O importador indireto, que se traduz nas figuras do encomendante e do adquirente por conta e ordem, também se equiparam a estabelecimento industrial, sujeitando-se ao recolhimento do IPI por ocasião da revenda das mercadorias (importada por outro, porém por sua conta ou sob sua encomenda).
Em suma, essa equiparação do adquirente por conta e ordem e do encomendante a estabelecimento industrial, resulta no enquadramento destes como contribuinte do IPI. Em conseqüência, a saída da mercadoria de seu estabelecimento (revenda da mercadoria importada), sujeita-se ao recolhimento desse imposto.
Portanto, nas hipóteses de interposição fraudulenta, em que o encomendante ou o adquirente fica oculto, não se apresentando à fiscalização, estará, simuladamente, afastada a condição de contribuinte do IPI.
Assim, repita-se, segundo tese fiscal, surge o tipo penal previsto no artigo 334, aquele que reprime as atuações ilícitas cujo objetivo seja iludir o pagamento de tributos.
Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:
Com base nesse raciocínio é que os agentes fiscais lavram autos de perdimento em razão da prática de interposição fraudulenta e, em paralelo, representação para fins penais pelo suposto descaminho.
III – O descaminho proveniente do cometimento de interposição fraudulenta.
Diante do que até agora se falou, evidencia-se que o tributo iludido em razão do cometimento de interposição fraudulenta, sem que esteja agregado o subfaturamento, é apenas o IPI.
Assim, preliminarmente, cabe buscar o conceito de descaminho, haja vista ser fundamental para confirmar se o não recolhimento de IPI, em casos de interposição fraudulenta, amolda-se a esse tipo penal.
Tomemos como base o conceito adotado por Pedro Decomain, que se coaduna com os de Damásio de Jesus e Fernando Capez, no qual descaminho é a conduta que “consiste no ingresso de mercadoria no território nacional ou na saída de mercadorias dele, iludindo-se, no dizer do artigo, total ou parcialmente, o pagamento dos tributos que sobre este fato possam incidir”[6].
Destarte, vê-se, segundo doutrina, que o descaminho é ilícito cometido na entrada ou saída de mercadorias em comércio exterior.
Pois bem, é cediço que o Registro da Declaração de Importação é o momento em que, por determinação legal, o importador recolhe os tributos incidentes na operação internacional. Esta é uma determinação prevista na IN/SRF nº 680/2006[7].
Ora, se o suposto importador ostensivo recolhe os tributos inerentes à importação no ato de registro da mercadoria (DI) e se inexiste alegação de subfaturamento, restaria, então, apenas o recolhimento (ou ausência) de tributos internos, não caracterizador de descaminho.
Assim, em flagrante distorção da norma legal, o fisco entende que o fato gerador do IPI, para os casos de interposição fraudulenta sem subfaturamento, é o da saída da mercadoria no estabelecimento do sujeito oculto (revenda no mercado interno).
Destarte, aceitando a tese fiscal apenas para o debate, entendo cabível três situações distintas para a caracterização ou não do descaminho em razão da interposição fraudulenta.
A primeira hipótese é aquela onde a Receita Federal retém a carga em despacho aduaneiro, aplicando-lhe, antes do desembaraço, a pena de perdimento.
Ora, a quebra da cadeia de IPI provocada pela interposição fraudulenta somente ocorre na saída das mercadorias no estabelecimento do sujeito oculto (revenda no mercado interno).
Considerando que o perdimento ocorreu depois de registrada a DI, mas antes da revenda no mercado interno (ainda em recinto alfandegado), inexiste o fato gerador do IPI para o estabelecimento equiparado a industrial, sendo, pois, inexistente a materialidade do crime de descaminho. Haveria, se muito, a tentativa do crime.
A segunda hipótese é aquela em que o perdimento é decretado antes mesmo do registro da DI. Nessa situação inexiste fato gerador de qualquer espécie de tributo, não sendo crível a imputação de ilícito, senão aqueles inerentes a vícios intrínsecos da carga (como mercadoria proibida, nociva ao consumidor, etc).
Destaque-se que para a primeira e segunda hipótese inexiste “ilusão” do tributo, no todo ou em parte, o fisco NÃO tem sequer como realizar o lançamento do suposto crédito de IPI, haja vista ser inexistente o fato gerador.
Ora, o Poder Judiciário tem proferido inúmeras decisões atacando esta conduta e indicando que inexiste descaminho antes do lançamento definitivo do crédito.
HC 200901215074
STJ DJE DATA:14/02/2011
HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ARTIGO 334 DO CÓDIGO PENAL). INVESTIGAÇÃO CRIMINAL INICIADA ANTES DA CONCLUSÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário. Doutrina. Precedentes. 2. Embora o delito de descaminho esteja descrito na parte destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código Penal, motivo pelo qual alguns doutrinadores afirmam que o bem jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração Pública, predomina o entendimento de que com a sua tipificação busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. 3. O delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do Código Penal configura crime material, que se consuma com a liberação da mercadoria pela alfândega, logrando o agente ludibriar as autoridades e ingressar no território nacional em posse das mercadorias sem o pagamento dos tributos devidos, não havendo, por conseguinte, qualquer razão jurídica para não se lhe aplicar o mesmo entendimento já pacificado no que se refere aos crimes materiais contra a ordem tributária, cuja caracterização só ocorre após o lançamento definitivo do crédito fiscal. 4. A confirmar a compreensão de que a persecução penal no crime de descaminho pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, tem-se, ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama a existência de decisão final na esfera administrativa para que se possa investigar criminalmente a ilusão total ou parcial do pagamento de direito ou imposto devidos (artigo 83 da Lei 9.430/1996, artigo 1º, inciso II, do Decreto 2.730/1998 e artigos 1º e 3º, § 7º, da Portaria SRF 326/2005). 5. Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do processo administrativo por meio do qual se apura a suposta ilusão do pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por parte dos pacientes, pelo que não se pode falar, ainda, em investigação criminal para examinar a ocorrência do crime de descaminho. 6. Ordem concedida para trancar o inquérito policial instaurado contra os pacientes
Ora, a fiscalização decreta perdimento por suposta pratica de interposição fraudulenta, aponta “quebra da cadeia de IPI”, mas NÃO lança qualquer tributo, como pode existir o descaminho? A terceira hipótese ocorre para os casos em que o bem foi desembaraçado e efetivamente chegou ao seu destino final: o sujeito oculto. Nesta situação entendo que duas são as possibilidades:
a)  Quando a mercadoria está exposta à venda ou em estoque, mas não foi vendida – não teve saída.
Nesta circunstância, ainda sem a ocorrência do fato gerador, entendo impossível a caracterização do ilícito, pois não houve qualquer dano ao erário, quando muito, repita-se, a tentativa.
b)    Quando a mercadoria efetivamente foi vendida, caracterizando a revenda ou saída.
Nesta circunstância entendo que o descaminho está consumado, segundo ótica fiscal.
IV – Descaminho tentado e consumado.
 Viu-se, pelas hipóteses elencadas, a possibilidade do delito de descaminho proveniente da interposição fraudulenta, inclusive na forma tentada. Agora, vejamos se é possível a tentativa no crime de descaminho e se, depois de consumado, existe a possibilidade de sua extinção.Para uma abordagem mais didática optarei pela análise do crime consumado, para, em seguida, questionar a tentativa. De pronto, devemos destacar, por relevante, que o crime de descaminho, antes do recebimento da denúncia, conforme entende o Supremo Tribunal Federal, pode ser extinto com o pagamento dos tributos não recolhidos.
HC 85942 / SP - SÃO PAULO
HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. LUIZ FUX
Julgamento:  24/05/2011           Órgão Julgador:  Primeira Turma
Publicação DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011
EMENT VOL-02556-01 PP-00078
Ementa
Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ART. 334, § 1º, ALÍNEAS “C” E “D”, DO CÓDIGO PENAL). PAGAMENTO DO TRIBUTO. CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE. ABRANGÊNCIA PELA LEI Nº 9.249/95. NORMA PENAL FAVORÁVEL AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. CRIME DE NATUREZA TRIBUTÁRIA. 1. Os tipos de descaminho previstos no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal têm redação definida pela Lei nº 4.729/65. 2. A revogação do art. 2º da Lei nº 4.729/65 pela Lei nº 8.383/91 é irrelevante para o deslinde da controvérsia, porquanto, na parte em que definidas as figuras delitivas do art. 334, § 1º, do Código Penal, a Lei nº 4.729/65 continua em pleno vigor. 3. Deveras, a Lei nº 9.249/95, ao dispor que o pagamento dos tributos antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade dos crimes previstos na Lei nº 4.729/65, acabou por abranger os tipos penais descritos no art. 334, § 1º, do Código Penal, dentre eles aquelas figuras imputadas ao paciente – alíneas “c” e “d” do § 1º. 4. A Lei nº 9.249/95 se aplica aos crimes descritos na Lei nº 4.729/65 e, a fortiori, ao descaminho previsto no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal, figura típica cuja redação é definida, justamente, pela Lei nº 4.729/65. 5. Com efeito, in casu, quando do pagamento efetuado a causa de extinção da punibilidade prevista no art. 2º da Lei nº 4.729/65 não estava em vigor, por ter sido revogada pela Lei nº 6.910/80, sendo certo que, com o advento da Lei nº 9.249/95, a hipótese extintiva da punibilidade foi novamente positivada. 6. A norma penal mais favorável aplica-se retroativamente, na forma do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal. 7. O crime de descaminho, mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. (...)
Veja que o STF entende, por lógica elementar, que o crime de descaminho, em razão da sua natureza tributária, pelo menos até o recebimento da denúncia, deve ter sua punibilidade extinta mediante o recolhimento dos tributos lançados.
Destarte, para a caracterização do crime de descaminho, faz-se necessário que o agente fiscal aponte, por intermédio de regular lançamento, o montante de tributo que o Contribuinte, mediante artifício fraudulento, tenha deixado de recolher, senão seria impossível a extinção da punibilidade pelo pagamento.
Ora, vê-se, portanto, a indispensabilidade do lançamento, haja vista ser esse o ato que quantifica o prejuízo imposto ao erário e oportuniza ao contribuinte, antes do recebimento da denúncia, afastar a punibilidade do crime.
Questiono: é possível o crime de descaminho tentado? Entendo ser absolutamente impossível, me referindo às hipóteses em que a carga ingressa em território nacional por zona primária alfandegada.
Com efeito, é regra que o crime consumado possua punição mais severa do que a mera tentativa, embora tenhamos teoria de que devam possuir penas idênticas. Assim, considerando que o pagamento dos tributos extingue a punibilidade do descaminho consumado, razão pela qual é fundamental o lançamento, tem-se que a tentativa, por não ocorrer o lançamento do tributo, evidencia a impossibilidade do pagamento e, portanto, estaríamos diante de aberração, pois como não há tributos para pagar, não haveria, em tese, a extinção da punibilidade.
Destarte, pensar em tentativa de descaminho seria desvirtuar a lógica penal, punindo a tentativa com mais rigor do que a consumação e mais, inconstitucional, pois confere tratamento desigual.
Se o pagamento no crime consumado extingue a punibilidade do descaminho, com muito mais ênfase tem-se que inexiste descaminho tentado, haja vista a inexistência de tributos a recolher.
V – Conclusão.
Diante dos argumentos elencados ao longo deste artigo, longe de ser perfeito sobre a ótica criminal, mas com espeque em abordagem tributária e aduaneira, entendo ser impossível a alegação de descaminho proveniente da prática de Interposição Fraudulenta, bem como inadmissível a tentativa de descaminho.
A interposição fraudulenta, infelizmente, tem-se mostrado questão praticamente dogmática, baseada em suposições, teorias desgarradas de provas, mas que vem causando estrago significativo na vida empresarial de muitos importadores. Não pode, com todas as vênias, servir de mote para denúncias por descaminho
[1] O sujeito passivo que consta na Declaração de Importação.
[2] O real comprador ou destinatário final da mercadoria, quando comprada exclusivamente a seu mando.
[3]  DL. 1.455/76 - Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:§ 2o Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não-comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados.(Incluído pela Lei nº 10.637, de 30.12.2002)
[4]  Art . 32. É responsável pelo imposto: (Redação dada pelo Decreto-Lei no 2.472, de 01/09/1988)
Parágrafo único. É responsável solidário: (Redação dada pela Medida Provisória no 2.158-35, de 2001). d) o encomendante predeterminado que adquire mercadoria de procedência estrangeira de pessoa jurídica importadora. (Incluída pela Lei no 11.281, de 2006)
[5] Art. 13. Equiparam-se a estabelecimento industrial os estabelecimentos, atacadistas ou varejistas, que adquirirem produtos de procedência estrangeira, importados por encomenda ou por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importador
[6] Decomain, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 5 ed. Editoria Fórum, p. 443.
[7] Art. 11. O pagamento dos tributos e contribuições federais devidos na importação de mercadorias, bem assim dos demais valores exigidos em decorrência da aplicação de direitos antidumping, compensatórios ou de salvaguarda, será efetuado no ato do registro da respectiva DI ... mediante débito automático em conta-corrente bancária...
André Oliveira Brito é advogado, especialista em Comércio Exterior

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

INDÚSTRIA TERÁ DE RECOLHER E TRATAR O LIXO


POR: Marcelo Roland Zovico é advogado criminalista do escritório Simões e Caseiro, doutorando da PUC-SP, pesquisador PDEE CAPES na Universidade del Salento na Itália.
Há quase um ano e meio, o Brasil ganhava uma lei que deveria mudar o dia a dia dos cidadãos e gerar na sociedade mais responsabilidade social. Em agosto de 2010, foi criada a lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), com a finalidade de regular sua reciclagem e manejo de acordo com padrões pré-estabelecidos, interesse direto do Estado, através do Direito Penal, criando mecanismos de tutelar o uso do solo, da terra, da água e das demais áreas potencialmente contaminadas que estavam comprometendo a qualidade de vida. No entanto, pouco se avançou até agora.
Com o aumento constante da população de forma desordenada, o assunto vem sendo cada vez mais discutido. Há quase duas décadas, foi alvo das preocupações mundiais na Eco 92. Em 2001, da Convenção de Estocolmo. Também foi abordado em tantas outras oportunidades, sempre com o objetivo de trazer regras para um problema global, principalmente dos países comprometidos, signatários dos pactos, como o caso do Brasil, que apresenta uma situação disforme na condução e tratamento das 150 mil toneladas de lixo produzidas diariamente em nossas cidades.
A condução do problema vinha sendo discutida em diversas instâncias de poder, e, finalmente, foi aprovada a lei que prevê sanções graves no âmbito do Direito Penal Ambiental e do Direito Penal Econômico, ganhando cada vez mais força para reprimir a degradação do meio ambiente.
O quadro em nosso país é bem aquém do esperado, sendo que cerca de 60% do lixo produzido vai diretamente aos populares “lixões” e apenas 13% do lixo encaminhado ao destino correto em aterros sanitários. Menos de 10% dos quase 6 mil municípios possuem coleta seletiva.
A lei possui um caráter abrangente, estabelecendo responsabilidade compartilhada entre governo, indústria, comércio e consumidor final para a destinação correta de resíduos sólidos, podendo ser aplicadas sanções previstas em caso do descumprimento da lei às pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou indiretamente, por sua geração.
No que tange os consumidores finais, estes se responsabilizam a condicionar de forma apropriada o lixo produzido para que possa ser coletado, separando-o quando houver coleta seletiva. O poder público deverá se adequar em quatro anos para elaborar o plano de manejo dos resíduos sólidos em conformidade com a lei, proibido de criar novos lixões, devendo dar espaço aos aterros sanitários, reaproveitando ou procedendo sua compostagem.
Com a nova lei, a indústria passa a ter a obrigação de recolher e tratar o lixo produzido, através da “logística reversa”, valendo para os produtores de agrotóxicos, pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes, eletroeletrônicos e lâmpadas.
Além das mudanças positivas, visando o desenvolvimento sustentável, ao proibir, a lei cria sanções, mudando, portanto o comportamento dos cidadãos, passando a não mais permitir a importação de resíduos sólidos perigosos, o lançamento de resíduos sólidos em praias, no mar, em rios e lagos, o descarte de resíduos in natura a céu aberto, a queima de lixo ou seu descarte em locais sem licença, e o infrator que desrespeitar a lei estará cometendo crime federal, com pena máxima de cinco anos de reclusão e multa.
Em caso de ter sido causado prejuízo, a lei impõe o dever de reparação dos danos causados, independentemente da existência de culpa, ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importe inobservância aos preceitos da lei ou de seu regulamento.
Ainda, nas disposições transitórias da lei, incorre nas mesmas penas quem abandonar os produtos ou substâncias referidas ou utilizá-los em desacordo com as normas ambientais ou de segurança, mesmo para quem manipula, acondiciona, armazena, coleta, transporta, reutiliza, recicla ou dá destinação final a resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou regulamento.
Em resumo, toda sociedade terá de se adaptar às mudanças legislativas dentro do prazo estabelecido que varia de dois a quatro anos a contar de sua publicação, logo, daqui a alguns meses. Mas, a perguntas é simples: os municípios, indústrias e a população estão preparados? A sociedade cobrará uma resposta.

sábado, 21 de janeiro de 2012

PREFEITO DE VILA FLÔR/RN PERMANECE AFASTADO

 O prefeito de VILA FLÔR, um município do Rio Grande do Norte, é investigado por formação de quadrilha, corrupção, uso irregular do dinheiro público entre outros crimes, continua afastado do cargo. O presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, negou pedido de suspensão de liminar que determinou o afastamento.

Para garantia da ordem pública, o prefeito chegou a ter a prisão preventiva decretada, mas a prisão acabou sendo convertida em medida cautelar alternativa de afastamento da função pública, com vencimentos. Ele também ficou proibido de frequentar a prefeitura e a câmara municipal. Isso porque ele é acusado de pagar vantagens indevidas a vereadores em troca de apoio do Poder Legislativo.

No pedido de suspensão de liminar impetrado no STJ, a defesa do prefeito alegou não haver previsão legal para o afastamento temporário do cargo, que só seria possível por sentença condenatória transitada em julgado. Sustentou que ainda não existe sequer processo judicial.

O ministro Ari Pargendler ressaltou que o afastamento do agente político foi deferido no âmbito de medida cautelar em processo de investigação criminal e que já foi oferecida denúncia contra o prefeito. “Uma decisão que, nesse nível, afasta do cargo um agente político está presumidamente afinada com a ordem pública”, afirmou o presidente do STJ. “Se ela está sujeita à reforma, só por meio de recurso esse resultado poderá ser alcançado.”P

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Poder político colide com o Estado Social e Democrático

 Por Hamilton Carvalhido

Passados mais de vinte anos do início da vigência da Constituição Federal de 1988, quando se tem presente a afirmação de que a medida do Poder de Punir do Estado é a reclamada pelo interesse social, expressão do princípio reitor do Código de Processo Penal que permanece em vigor, não se pode deixar de reler, com redobrada atenção, a letra constitucional dos direitos e das garantias individuais.
Ainda hoje, entre nós, colidem as duas visões do poder político, porque incompatíveis o Estado Autoritário e o Estado Social e Democrático de Direito. Afinal, a efetividade das transformações sócio-políticas somente é alcançada através de um laborioso e longo processo dialético, principalmente as que encontram manifestação formal em um sistema jurídico estruturado a partir de um projeto constitucional que, tendo como supremo valor a dignidade humana, traz no seu âmago a solução, em favor dos direitos fundamentais, do embate entre o poder, enraizado no passado, e a liberdade, nas suas aspirações  presentes e futuras.
A efetividade da Constituição é um processo que reclama de todos e de cada um, como acertadamente se diz da liberdade, a eterna vigilância, até porque o autoritarismo, sempre sedutor à tendência ao despotismo individual, é uma ameaça indescartável, parecendo permanecer, consciente ou inconscientemente nas pessoas, solícito às oportunidades de retorno ou de continuidade, sob formas, por vezes, enganosas e só aparentemente democráticas e de Direito.
Nada, por menos significante que pareça, deve ser subtraído à luta pelo direito. Em tema de Poder de Punir do Estado, em face do qual se levantam, como seus limites ontológicos, os direitos fundamentais, cujo sacrifício há de ser o menor possível, e as garantias individuais, infranqueáveis, nada é ínfimo, pequeno, de pouca importância, irrelevante; ao contrário, tudo é grave, intenso, básico, maior, relevantíssimo, de necessária consideração.
Não se pode deixar de registrar as conquistas garantistas introduzidas no Código de Processo Penal quando ainda vigente a Constituição de 1946, bem como as suas importantes modificações já sob a égide da Constituição Cidadã. De par com tal contribuição maior do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, está a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, que tem contemplado a Sociedade Brasileira com sucessivas decisões que se mostram como verdadeiros e sólidos alicerces da reclamada, indispensável e inadiável efetividade da vigente Constituição Federal.
Há, todavia, para que o sonho das novas formas constitucionais se converta em realidade por inteiro e esteja no cotidiano da vida dos homens, muito que fazer, incluidamente na seara das antigas normas de tempos ditatoriais mais antigos, que, por vezes, parecem inspirar, inconscientemente ou não, novos e atuais atos e ações de instituições do poder, que infringem a Constituição Federal.
O exercício do poder de persecução criminal, que compreende a investigação do delito, o processo penal e a execução da pena, há de ser permanente, rigoroso e eficaz, sem distinção de qualquer espécie, ante a submissão de todos ao Direito, assim o exigindo a Sociedade Brasileira, em face de deveres indeclináveis do Estado.
Tais poderes-deveres, por certo, não reabrem, no Estado Social e Democrático de Direito, instâncias de transigências com o antigo regime, de modo a permitir violações das garantias constitucionais e, assim, a do devido processo legal, que, por certo, abrange as investigações dirigidas à apuração dos crimes e da sua autoria.
Esse poder de investigar, que ainda segue sendo chamado de inquisitorial, tem se revelado, ao longo dos tempos, como uma das mais graves manifestações do poder de persecução do Estado, principalmente o de matiz autoritário, que, com as suas buscas da verdade real e a sua necessidade peculiar de legitimar o arbítrio com resultados de ressonância social, dá causa a múltiplas violações dos direitos e das garantias individuais.
Entre as várias questões maiores que se resolvem no Estado Social e Democrático de Direito em favor das garantias individuais como limites intransponíveis ao poder de punir do Estado, está a referente à razão da investigação, assim sintetizada numa indagação: as investigações podem ser iniciadas sem um fundamento razoável a respeito da prática de uma infração penal? Em outras palavras: pode-se investigar qualquer pessoa, buscando saber se cometeu crime, sem a notícia da ocorrência de qualquer fato que se possa ter como expressão idônea da prática de um delito? Ou por fim, pode-se suspeitar, simplesmente suspeitar e investigar, sem fato qualquer que tanto autorize?
Tenho que a única resposta, evidente e peremptória, que se admite é a  negativa, por inexpugnáveis ao abuso a dignidade humana e os direitos que dela resultam, em pura consequência do pacto social originário que delegou o poder político, na sua origem, já limitado pelos direitos fundamentais.
Por certo, a presunção de inocência, que figura, entre as garantias individuais, como um dos limites irremovíveis do poder de punir do Estado, não há de ser entendida apenas eficaz nas fases da persecução criminal, mas, sobretudo, e por maior razão, antes mesmo da sua própria instauração, onde revela toda a sua pujança ética, de modo a inibir, absolutamente, em obséquio da plenitude dos direitos fundamentais, toda e qualquer forma de investigação criminal,  só e exclusivamente admissível a partir de fundamento razoável a respeito da prática de uma infração penal que legitime a atuação do Estado.
Enganou-se o poeta ao anunciar a volta dos alquimistas?
Seriam os inquisidores?
A Constituição Cidadã não lhes dá passagem.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

NÃO SE SUBMETE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL A INTERPRETAÇÕES APAIXONADAS


POR: LUIZ FUX - MINISTRO DO STF
A opinião pública, elemento importante de legitimação democrática das decisões judiciais, vem se insurgindo com extrema justiça contra as mazelas do Poder Judiciário.
É mister, que reste claro para o povo, representado pelos poderes da República, que é do interesse da própria instituição a apuração das disfunções, surjam de onde surgirem.
Essa questão atual não se confunde com a técnica de julgamento da Suprema Corte.
O tema gravita em torno dos valores inerentes aos juízes conquanto seres humanos; vale dizer: a paixão e a razão.
Séculos atrás o universo jurídico viu-se invadido pela escola do direito livre, tendo como um de seus precursores Kantorwicz.
Carlos Maximiliano, o filósofo da hermenêutica, anotou na sua memorável obra com mais de duas dezenas de edições que essa escola do pensamento jurídico deixava-se tomar pela paixão, desconsiderando a razão jurídica e as leis e, por isso, percorreu a Europa como um meteoro, trajeto rápido sem deixar vestígios, agradando, apenas, aos teóricos do anarquismo.
Jhering, por seu turno, advertia que o fim do direito era a paz, mas o meio de obtê-la era a luta.
O epílogo secular dessa luta consagrou o banimento da autodefesa individual e social e o monopólio da Justiça como guardiã do direito posto, evitando, assim, a vitória do forte sobre o fraco, fazendo prevalecer o melhor direito.
Incumbido dessa tarefa pelos representantes do povo compete ao Poder Judiciário tornar realidade os direitos consagrados, além de para esse fim submeter-se à Constituição e às leis.
É cediço que sem o respeito de todos pelo direito posto, não há ordem e não há paz social.
Essas elementares percepções denotam a necessidade de esclarecimentos ao povo sobre questões atuais sobre como deve atuar a Suprema Corte.
A questão central é saber: por que a Corte Suprema não pode decidir sempre conforme a opinião pública? Por que agem os juízes no espaço aparentemente reservado ao Legislativo?
A opinião pública é variável e apaixonada e, no âmbito jurídico, deve prevalecer a contenção do magistrado, tal como na visão lúdica enunciada por Calamandrei: o cidadão decide com a paixão ao passo que ao juiz incumbe fazer prevalecer a razão jurídica.
Historicamente, paixões passageiras serviram às barbáries, e os juízes que se encantaram com esse sentimento efêmero foram julgados em Nuremberg.
É evidente que sempre que possível a Suprema Corte deve legitimar-se democraticamente por meio de decisões que mereçam o apoio popular, como por exemplo ocorreu recentemente com o reconhecimento da união homoafetiva, com a liberdade de expressão da imprensa e do povo, este na marcha pela descriminalização do uso da maconha.
Entretanto, nem sempre é assim.
Um país que respeita a sua Constituição rígida não pode submetê-la às interpretações apaixonadas e momentâneas, sob pena de mutilá-la ao sabor do populismo judicial, que é mais pernicioso do que o populismo político.
O Supremo Tribunal Federal é guardião dos direitos fundamentais contemplados na Constituição, ainda que contra os avanços da maioria, por isso que nessa luta entre o Constitucionalismo de direito e o Constitucionalismo popular o tribunal deve ser necessariamente contramajoritário.
A voz racional do povo está na sacralidade da Constituição lavrada por um poder originário eleito pela sociedade e sob a inspiração de Deus; como enuncia a Carta Maior.
A voz apaixonada reside no dia a dia, a qual, pela sua própria instabilidade, recomenda reflexão.
O denominado ativismo judicial, vale dizer a atuação do Judiciário no espaço reservado ao Legislativo, decorre não só da omissão em legislar sobre determinado tema mas também da provocação do Judiciário para manifestar-se e, por força da mesma, tem o dever de fazê-lo.
Os juízes não podem agir sem que sejam solicitados. É princípio elementar de direito.
Quem quer que se dedique à história das Cortes Supremas há de verificar que há denominadas eras, como por exemplo, a "era Warren" da Suprema Corte Americana, na qual esta plasmava decisões nos espaços vazios de regulação dos direitos fundamentais, legados ao relento pelo Legislativo.
Os momentos denominados do ativismo judicial são marcados exatamente pela defesa das liberdades, entre as quais a liberdade de imprensa, a igualdade dos homens bem como outras garantias pétreas arrancadas entre lutas e barricadas contra o nazi-facismo.
Essas revisões da história conduzem-nos a concluir que mercê de devermos sempre estar atentos à higidez moral da instituição, o pretenso constitucionalismo popular corre o severo risco de encantar momentaneamente; passar pela história como um meteoro da paixão sem deixar vestígios, senão o único: o de criar a escola do "direito passional", em nome do qual se morre e se mata, mesmo sem razão.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

SÓCIO SÓ PODE SER EXCLUÍDO COM JUSTA CAUSA

A quebra de confiança entre os sócios não é suficiente para a dissolução parcial da sociedade por cotas de responsabilidade limitada para exclusão de um deles. Para tanto, é preciso que seja demonstrada, também, a justa causa. Com o entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou pedido de um casal de sócios da empresa Concorde Administração de Bens, do Paraná. Eles tentavam outro casal do quadro societário, com base unicamente na quebra de confiança entre eles.
A disputa envolve uma empresa de 30 anos de existência, que pertence aos irmãos Seme Raad e Faissal Assad Raad e suas mulheres. Eles são donos também da La Violetera, que produz frutas secas, azeites e conservas. É Seme Raad quem pede que o irmão e a cunhada sejam excluídos da sociedade. Cada casal envolvido tem direito a 50% da sociedade.
Ao analisar o caso, o Tribunal de Justiça do Paraná lembrou que a affectio societatis — intenção de os sócios constituírem uma sociedade e é baseada na declaração de vontade expressa e manifestada livremente pelas partes — autorizaria apenas a retirada dos autores da ação da sociedade e não a exclusão dos réus. Os autores do pedido buscaram amparo no artigo 336, parágrafo 1º, do Código Comercial, que não faz tal exigência para autorizar a exclusão de sócio.
Existem duas possibilidades para a exclusão parcial de uma sociedade: ou por intermédio do direito de retirada ou pela exclusão de um dos sócios. Segundo a ministra Nancy Andrighi, na segunda hipótese, dada sua extrema gravidade, exige-se não apenas a alegação de rompimento do vínculo de confiança, mas, também, a demonstração da justa causa.
“A perda da affectio societatis é a consequência de um ou mais atos nocivos à consecução dos fins sociais da empresa, praticados por aquele que se pretende excluir, os quais devem ser demonstrados”, disse a ministra. De acordo com ela, apenas algumas causas que justificam a exclusão estavam expressas no Código Comercial, mas essas não eram taxativas. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.

A exclusão do sócio na sociedade limitada e o novo Código Civil

POR:  Antonio Carlos Antunes Junior

Ad initio, mister salientar que o Novo Código Civil, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, passou a regular o "Direito de Empresa" no Brasil, e desta forma, salvo as Sociedades Anônimas com legislação própria, as demais sociedades devem respeitar o disposto no Livro II do novo Código Civil.
O novo diploma civil nacional, dentro do direito das empresas, trouxe diversas inovações, dentre estas temos as novas disposições quanto à forma e aos requisitos para a exclusão do sócio minoritário da sociedade.
Vejamos, portanto, as modificações trazidas pelo Código e as celeumas que podem surgir com as novas regras de exclusão de sócio pelos sócios majoritários, tendo como foco principal a modalidade de Sociedade Limitada, a mais usada em nosso país.
No que concerne à temática em tela mister se faz verificarmos o artigo 1.085 do Código Civil o qual dispõe que "ressalvado o disposto no artigo 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa".
Assim, de acordo com o artigo supra, em primeiro lugar devemos destacar o quorum necessário para a exclusão do sócio minoritário: a exclusão somente poderá ocorrer desde que seja aprovada pela maioria dos sócios capitalistas, sendo estes aqueles que representem mais de 50% (cinqüenta por cento) do capital social.
O Código, inovando as disposições anteriores a respeito da matéria, também exige que para a exclusão haja disposição expressa no Contrato Social da possibilidade de exclusão em virtude de "Justa Causa". A "Justa Causa" , como o próprio artigo explica, são atos de inegável gravidade que podem comprometer a continuidade da sociedade.
Desta forma, havendo os requisitos de aprovação da maioria do capital social, previsão prévia e expressa no contrato social da exclusão por justa causa, e a presença de atos graves, os sócios majoritários poderão mediante simples alteração contratual excluir o sócio indesejado.
Vale frisar que em virtude da legislação comercial anterior ao código não exigir previsão expressa no Contrato Social da Justa Causa, se o Contrato não estiver atualizado, aqueles empresários que desejarem excluir algum dos sócios terão muita dificuldade em faze-lo, pois sobrará somente a opção da via judicial para tal (veremos tal possibilidade logo abaixo).
É importante esclarecer que, apesar de haver aparente conflito entre o quorum exigido para exclusão do sócio, do artigo 1085, e o quorum para Alterações Contratuais previsto no artigo 1.076, inciso I cominado com o artigo 1.071, inciso V do Código Civil. Digo aparente conflito, pois os artigos 1.071, V c/c 1076, I dispõem que para qualquer alteração do Contrato Social é necessário que a deliberação seja aprovada por no mínimo 75% do Capital Social, sendo que a exclusão por alteração contratual dar-se com a aprovação de maioria do Capital. A interpretação que se deve dar é a de que estes artigos (art. 1.071 e 1.076 CC) dispõem sobre a Regra Geral para alterações de contrato, sendo que as regras para exclusão são específicas, e desta forma, para tal aplica-se o quorum previsto no artigo 1.085, ou seja, aprovação da metade mais um do capital social.
Como já mencionamos, o Código Civil trouxe ainda a possibilidade de exclusão por vias judiciais, que pode ser utilizada como opção alternativa aos casos em que o Contrato Social silencia a respeito da matéria.
A exclusão mediante ação judicial encontra previsão legal no artigo 1.030 o qual dispõe que "pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente" (grifo nosso).
Desta forma, numa análise sistemática normativa do novo ordenamento civil verificamos que não havendo a disposição expressa da possibilidade de exclusão de sócio no Contrato Social, a única forma de se implementar tal desejo da maioria dos sócios será através de uma ação judicial a qual deve obedecer aos requisitos do artigo 1.030 do Código, os quais veremos mais detalhadamente em seguida.
A primeira exigência legal trazida pelo Código para a ação judicial de exclusão de sócio, é que a iniciativa da lide seja da maioria dos sócios. Devemos entender que "maioria dos demais sócios", disposto no artigo em tela, trata-se da Maioria do Capital Social, ou seja, devemos aplicar à este aspecto a mesma regra da exclusão mediante alteração contratual.
Outro requisito é a "falta grave" do sócio "no cumprimento de suas obrigações". As obrigações legais do sócio estão previstas nos artigos 1.001 a 1.009 do Código(1). Mister salientar que cada Contrato Social também dispõe quais as obrigações de cada sócio, sendo que o descumprimento das quais também ensejam falta grave para efeitos da medida judicial em tela.
Também será motivo para exclusão do sócio a declaração judicial de incapacidade para os atos da vida civil. Vale frisar que o conceito abrange tanto a Incapacidade Absoluta como a Incapacidade Relativa, previstas respectivamente nos artigos 3o e 4o do Código Civil. Desta forma, ambas modalidades de incapacidade ensejam o direito de exclusão.
Isto posto, vejamos quais as conseqüências da exclusão de um dos sócios tanto para a Sociedade quanto para os sócios que nela permanecerem. Vejamos o que dispõe o artigo 1.031 do novo código, o qual trás a seguinte redação:
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
§ 1o O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota.
§ 2o A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
À luz deste artigo e de seus parágrafos, verifica-se que a cota do sócio excluído deverá ser liquidada mediante apuração do seu respectivo valor, sendo que para tal deverá ser levando em consideração a situação patrimonial da empresa, na época da referida dissolução parcial.
A retirada de um dos sócios poderá acarretar duas conseqüências, ou Capital Social deverá ser reduzido, excluindo o valor da cota liquidada, ou seu valor poderá ser complementada pelos sócios que permanecerem na sociedade.
O pagamento do valor apurado como devido ao sócio excluído por sua saída deverá ser efetuado no prazo de noventa dias em dinheiro, a contar da data da Liquidação. Porém o dispositivo legal não é cogente quanto ao referido prazo e à forma de pagamento, pois possibilita que as partes estipulem forma e prazo de pagamento diversos da lei.
A título comparativo, vale frisar que o novo Código Civil dificultou a possibilidade de exclusão de sócio minoritário, posto que trouxe novas exigências tanto para o caso de exclusão mediante alteração contratual quanto para a mediante ação judicial.
Porém, mister salientar que, após análise dos demais dispositivos legais no capítulo "Do Direito das Empresas", verificamos que tais regras corroboram com as demais disposições que tratam do sócio minoritário, pois o novo diploma legal, em termos gerais, procurou proteger tal sócio contra eventuais abusos dos sócios majoritários.
Nota de rodapé
1- Os artigos citados encontram-se no Capítulo Das Sociedades Simples, os quais também se aplicam às Sociedades Limitadas por força do artigo 1.053 que diz "A sociedade Limitada rege-se, nas omissões deste capítulo, pelas normas da sociedade simples".
Antonio Carlos Antunes Junior é advogado, pós-graduado pela UniFMU em Direito Civil. (SP)

DECISÕES DO STJ ASSEGURAM A EFICÁCIA DO SISTEMA DE PENHORA ON LINE


A modelo de penhora on line nasceu em 2001 a partir de um convênio entre o Banco Central com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Conselho da Justiça Federal (CJF) e logo se estendeu a outros órgãos do Poder Judiciário. Seu principal objetivo foi permitir a execução mais rápida das sentenças condenatórias e fazer com que o credor tivesse uma certeza maior da satisfação da dívida.

Em 2011, foram mais de 2,5 milhões de pedidos de penhora on line expedidos pela Justiça Estadual e mais de 300 mil pela Justiça Federal. Graças à implantação de um sistema eletrônico eficaz, o antigo modelo, no qual a penhora era feita via ofício em papel, ficou para trás. Isso não impediu, contudo, questionamentos quanto à sua aplicação. Muitas delas foram resolvidas pelo Judiciário ao longo de 2011.

Em março do ano passado, o STJ decidiu que o valor depositado em conta conjunta pode ser penhorado em garantia de execução, ainda que somente um dos correntistas fosse o responsável pelo pagamento da dívida. Os ministros da Segunda Turma entenderam que se o valor pertence somente a um dos correntistas, não deve estar nesse tipo de conta, pois nela o dinheiro perde o caráter de exclusividade.

Dinheiro prevalece sobre outros bens
Em outra decisão, os ministros da Primeira Turma entenderam que o ônus de comprovar a indispensabilidade dos valores depositados é do executado. Pelo Código de Processo Civil (CPC), a execução se processa no interesse do credor, que tem a prerrogativa de indicar bens à penhora. Na ordem preferencial, prevalece o dinheiro, depósito ou aplicações financeiras. De acordo com a Primeira Turma, compete ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta corrente são impenhoráveis.

Legalmente, vencimento, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos e aposentadoria, entre outros, não são penhoráveis. O STJ fixou o entendimento de que penhora sobre capital de giro deve observar as disposições do artigo 655-A, parágrafo terceiro, do CPC. Isso porque, ao determinar a penhora em dinheiro da empresa, o magistrado deve atentar para certos requisitos, como a nomeação de administrador e o limite da quantia que permita à empresa continuar suas atividades.

A ordem de preferência da penhora não tem caráter absoluto, segundo o STJ (Súmula 417/STJ). Mas, em regra, a sequência estabelecida na lei deve ser observada. Cabe ao executado, se for o caso, comprovar as circunstâncias que possam justificar situação de exceção, que modifique a ordem legal. Segundo o art. 630, do CPC, a execução deve se dar de forma menos gravosa ao devedor.

Sistema Bacen-Jud

A penhora on line é efetivada pelo Sistema Bacen-Jud, no qual o juiz emite uma ordem eletrônica diretamente ao banco. por meio de um site de acesso restrito, e esse determina o bloqueio da conta. O STJ decidiu recentemente que essa forma não é exclusiva. A requisição de informações e a determinação de indisponibilidade de bens podem ser feitas pelo tradicional método de expedição de ofício.

O artigo segundo da Resolução n 61/2008 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dispõe que é obrigatório o cadastramento no sistema Bacen Jud de todos os magistrados brasileiros cuja atividade compreenda a necessidade de consulta e bloqueio de recursos financeiros de parte em processo judicial. A penhora por esse sistema depende de requerimento expresso do credor, não podendo ser determinada ex-officio pelo magistrado. O credor é quem deve demonstrar inclusive os indícios de alteração da situação econômica do executado.

Arresto on line

O Sistema Bacen-Jud pode ser usado para se efetivar não apenas a penhora on line, como também o arresto on line. De acordo com os ministros, o juiz pode utilizar o sistema para realizar o arresto provisório previsto no art. 653 do CPC, bloqueando as contas do devedor não encontrado. Em outras palavras, é admissível a medida cautelar para bloqueio de dinheiro nos próprios autos de execução. A medida correta para impugnar decisão que determina o bloqueio, segundo o STJ, é o agravo de instrumento.

A Segunda Seção, em caso julgado também em 2011, decidiu que não é necessário que o credor comprove ter esgotado todas as vias extrajudiciais para localizar bens do executado, para só então requerer a penhora on line, por meio do sistema Bacen-Jud. Segundo os ministros, antes da entrada em vigor da Lei n. 11.382/06, a penhora eletrônica era medida excepcional e estava condicionada à comprovação de que o credor tivesse realizado todas as diligências para localizar bens livres e desembaraçados da titularidade do devedor. Com a edição da lei, a exigênciadeixou de existir.

Em outro processo, a Primeira Seção entendeu que a Fazenda pode recusar o oferecimento de bens à penhora nos casos legais, tais quais a desobediência da ordem de bens penhoráveis prevista no art. 11 da Lei 6.830/80 e a baixa liquidez desses. A conversão em renda do depósito em dinheiro efetuado para fins de garantia da execução fiscal somente é viável após o trânsito em julgado que reconheceu a legitimidade do pedido.

Pedidos de penhora reiterados
A Corte Especial do STJ discutiu, em recurso julgado sob o rito dos processos repetitivos, se mediante o requerimento do exequente para que fosse efetuada a penhora on line, o juiz estaria obrigado a determinar sua realização ou se era possível rejeitar o pedido. Os casos abarcavam situações em que a primeira diligência foi frustrada em razão da inexistência de contas, depósitos ou aplicações financeiras em nome do devedor e o credor formula um novo pedido.

Segundo entendimento da Corte, os sucessivos pedidos devem ser motivados, para que a realização da penhora on line não se transforme em um direito potestativo do exequente, como se sua realização, por vezes ilimitadas, fosse obrigação do julgador, independentemente das circunstâncias que envolvem o pedido.

A permissão de apresentação de requerimentos seguidos e não motivados representaria, segundo a Corte, a imposição de uma grande carga de atividades que demandariam tempo e disponibilidade do julgador, gerando risco de comprometimento da prestação jurisdicional. A exigência de motivação, para a Corte, não implica a obrigação de credor investigar as contas do devedor, o que mesmo não seria possível em razão do sigilo bancário.

Localização dos bens em nome do devedor


Um dos fatores de maior entrave para a a satisfação do credor é a dificuldade de localização de bens na esfera patrimonial do devedor, haja vista que é cada vez mais comuml a diversidade de aplicações e tipos de investimentos em nome do devedor. A iniciativa que veio a dar uma resposta mais rápida ao Judiciário no quesito penhora adveio do chamado Sistema Bacen-Jud e foi estruturada de forma a criar um site de acesso restristo entre os magistrados e o Banco Central.

Por meio da primeira versão do Bacen Jud, o juiz emitia a ordem eletrônica e o Banco Central fazia o encaminhamento automática das ordens ao sistema bancário e este respondia via correio ao Poder Judiciário. O Bacen Jud 2.0 mudou o procedimento e permitiu a integração com o sistema das instituições financeiras, as quais desenvolveram também sistemas informatizados para eliminar a intervenção manual. O prazo de processamento das ordens passou a 48 horas.

Pelo Bacen Jud, houve a automatização de um cadastro de contas únicas, criado para evitar o bloqueio múltiplo. “A lenda mais excêntrica que houve à época de sua criação é que o Poder Judiciário firmou um convênio para que os juizes passassem a determinar o bloqueio de valores em conta corrente”, disse a ministra Nancy Andrighi, em ocasião de palestra sobre o tema denominada “A gênese do sistema ‘penhora on line’. O trabalho não tinha esse objetivo, porque, desde a década de 80, os juizes já determinavam bloqueios por meio de ofício de papel.

Ganha mais não leva

O que fez o Bacen Jud, segundo a ministra Nancy Andrighi, foi racionalizar os atos de informação no processo para eliminar as incontáveis frustrações que os credores vivenciavam. O avanço da idéia do Bacen Jud ao denominado ‘penhora on line’ se traduziu no sucesso do método empregado. O Bacen Jud permitiu, na avaliação da ministra, maior rapidez às determinações do Poder Judiciário ao sistema financeiro, para evitar a frustração nos processos de execução, mudando o paradigma “ganha mas não leva”. 

O ÔNUS SOCIAL PELAS TRANSGRESSÕES PENAIS


"Not in my back yard”, ou “não no meu quintal”, é um bordão cantado por urbanistas e ambientalistas americanos, que traduz a reação coletiva à instalação de edificações ou equipamentos tão necessários quando indesejáveis para as pessoas que residem ou têm interesses nas áreas escolhidas para a sede dessas construções. Por mais que todos saibam da necessidade do escoamento das águas servidas, existe uma natural recusa à construção das estações de tratamento nas cercanias das casas de quem usa o referido recurso natural. Igualmente ocorre com o lixo doméstico: os que geram toneladas desse resíduo pedem o recolhimento do material posto às suas portas, mas exigem que seja depositado longe dali, ainda que para fins de reciclagem, pouco importando se o acondicionamento será vizinho à casa de outra pessoa que não deu causa ao monturo.
Os pacifistas, contrários ao uso da energia nuclear, também lançaram mão dessa ferramenta social de repulsa, que por sinal popularizou-se sob o acrônimo NIMBY (primeiras letras da frase emblemática, em inglês), para rechaçar a instalação de usinas de beneficiamento de urânio em determinadas áreas, bem como da construção de tanques para guardar os rejeitos de tal atividade energética.
O tema tem tanta relevância nos dias atuais, que deixou de pertencer somente ao campo da gestão pública, do urbanismo e do ambientalismo, e passou a ser preocupação de segmentos outros, como é o caso da psicologia. Assim, o estudo do comportamento aparentemente dúbio das pessoas que querem a realização de um benefício para si, mas recusam a participação nos efeitos negativos dessas benesses, tem sido ocupação dos psicólogos que analisam o consciente e o inconsciente dos grupos. Pela identidade de objeto de estudo, essa abordagem conjuga-se a estudos da sociologia e até mesmo da saúde pública, entendendo-se que a repulsa coletiva ocorre em razão da percepção social do risco, advindo as condutas de autodefesa. Assim é o pensar de Nicholas Freudenberg (Not in our backyards: community action for health and the environment. Nova York, Monthly Review Press, 1984).
Além dos desagradáveis remanescentes ambientais, existem obras sociais que se submetem ao mesmo processo de recusa acima apontado. Como reage a sociedade, por exemplo, para receber um egresso penitenciário? Seria a coletividade ingênua ao ponto de imaginar que os desviados comportamentais são, exclusivamente, “um problema do Estado”, não dizendo respeito aos cidadãos que se qualificam “de bem”? Mesmo que em uma análise mais racional a conclusão seja a de que é ônus também da sociedade civil participar da recuperação dessas pessoas, é de fácil constatação a claudicância dos particulares quando instados a assumir o papel de partícipe da execução penal, talvez porque a sociedade não foi claramente convidada a discutir a missão que lhe caberia no contexto da ordem inaugurada com a Lei 7.210, de 10 de julho de 1984, a Lei das Execuções Penais – LEP. Referido diploma, no seu artigo 4º, prevê expressamente a cooperação da comunidade no processo de cumprimento da pena, bem assim na reinserção do egresso carcerário nas atividades laborais e sociais que o esperam no ambiente extramuros da prisão.
Nesse contexto, ofício importantíssimo tem o Conselho da Comunidade, com composição e atribuições previstas nos arts. 80 e 81 da LEP, tocando-lhe a) visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes no âmbito da sua atuação; b) entrevistar presos; c) apresentar relatórios mensais ao juiz da execução e ao Conselho Penitenciário; e d) diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para aperfeiçoar a assistência ao preso.
Mas, será que somente com o funcionamento do Conselho da Comunidade, por mais eficiente que seja, estará atendido o princípio da participação social, gizado no artigo 4º da LEP (“O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”)? Provavelmente não. Ao Conselho cabe uma tarefa institucional, que tem também externalidades pedagógicas, demonstrando ao corpo social que é possível a interação entre os que cumprem penas e os que tiveram melhor destino. Não se trata, nessa relação, de um mero gesto de piedade para com os transgressores. Cuida-se, é verdade, de bem mais que isso; de um importante papel na concretização dos objetivos das penas (prevenção geral e específica, reprovação e ressocialização). Esse atuar do Conselho tem muito de orientador político da sua clientela (presos e egressos) para a readaptação comportamental e para a reinserção no meio produtivo.
Cabe ao poder público e à sociedade civil dar as chances reais para a efetiva recuperação dos que estão submetidos a penas ou que saem dos presídios. É no momento do autorizativo judicial para o cumprimento da pena em regime semi-aberto ou da expedição do definitivo alvará de soltura que deve residir uma reflexão coletiva visando à demolição dos preconceitos sinetados pela sigla NIMBY já acima referida. Para tanto, pouco importa o grau de conhecimento da filosofia dessa recusa coletiva aos “resíduos danosos” dos males para os quais a própria sociedade contribuiu (a falta de educação, da condição de trabalho etc.). Mesmo que o crime não tenha somente como fatos geradores esses influxos sociais (vide os delitos passionais, que disso independem), haverá sempre um encargo social que não pode deixar de ser resgatado. Em boa parte dos casos o mero encarceramento do infrator não é a melhor solução, inclusive porque um dia a prisão chegará ao fim e o problema aflorará. O paliativo deixará de surtir efeitos.
Achar que a ampliação de vagas penitenciárias ou a construção de novos presídios por si somente devolverá a segurança à sociedade é o mesmo que conjeturar que a construção de novos cemitérios (ou a expansão dos atuais) resolverá os problemas de saúde pública de uma Nação. Há que existir harmonia entre a contenção das causas e o as medidas para a diluição das consequências.
É imperativo, portanto, que a sociedade supere os exageros da autodefesa e a crise de abstencionismo e assuma o que lhe cabe nas atividades de recuperação e ressocialização das pessoas que sofrem condenações, estimulando e dando efetividade às chamadas “alternativas penais” (cumprimento de restrições de direitos, trabalhos substitutivos etc.), bem como abrindo caminhos aos que saem do cárcere. Se for omissa, estará apenas alimentando o conjunto de problemas que mais à frente virá atormentá-la. Aí talvez seja tarde, ou pelo menos ineficiente, dizer “não no meu quintal”.

domingo, 15 de janeiro de 2012

USUÁRIO NÃO PODE SER PUNIDO POR PORTE DE DROGAS

Por Marília Scriboni

A pessoa que atenta contra sua vida não precisa de punição, mas de ajuda. O espírito, que levou o legislador a tipificar a conduta daquele que tenta cometer suicídio, também move a Defensoria Pública de São Paulo em outro caso: o porte de drogas para consumo próprio. Em Recurso Especial com repercussão geral reconhecida no último 9 de dezembro, Defensoria paulista questiona a constitucionalidade do dispositivo da Lei de Drogas que criminaliza a conduta.
De acordo com o artigo 28 da Lei 11.343, de 2006, quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, comete crime. Para a Defensoria, o dispositivo viola o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que assegura o direito à intimidade e à vida privada, já que o porte não implica lesividade, princípio básico do direito penal, uma vez que não causa lesão a bens jurídicos alheios.
“Não é possível aceitar que uma norma infraconstitucional ofenda o ápice do ordenamento jurídico, considerando crime uma conduta que está devidamente amparada por valores constitucionalmente relevantes”, argumenta o defensor público que cuida do caso, Leandro de Castro Gomes.
O defensor público sustenta que a proibição do porte de drogas para consumo próprio é inconstitucional. Segundo ele, “a resposta tem como premissa o movimento funcionalista da Teoria do Delito. Superou-se o finalismo e é preciso interpretar as categorias do delito, que são tipicidade, ilicitude e culpabilidade, sob o viés da intervenção mínima e do princípio da lesividade”.
Ele complementa: “Para que uma conduta seja delituosa, não basta um enquadramento formal ao tipo legal. É preciso, ainda, que haja uma lesão ou um perigo de lesão efetivo, real e relevante a um bem jurídico alheio”.
A tese será analisada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar recurso de um mecânico cearense, de 51 anos, preso em Diadema (SP), onde foi acusado de portar três gramas de maconha. A droga foi encontrada dentro de um marmitex, em sua cela. O recurso, que questiona acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Criminal de Diadema, está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes. Pelo porte da droga, o homem foi condenado a dois meses de prestação de serviços à comunidade.
Na prática, a Defensoria acredita que a conduta não é típica, já que “uma auto-lesão jamais poderá ser considerada fato criminoso, eis que ausente, na espécie, lesão a bem jurídico alheio”. “No tocante à pena aplicada, caso seja considerada procedente a ação penal, pugna pela simples advertência, eis que o acusado já possui pena aplicada superior a 10 anos, o suficiente para que sejam alcançadas todas as "funções" da pena. Para quê incidir eventual prestação de serviços? Desnecessária. Nada mais", argumenta o órgão.
Ao apresentar as contrarrazões à 2ª Vara Criminal de Diadema, o Ministério Público paulista refutou o ponto de vista da Defensoria. Disse que “até o momento tal artigo não foi declarado atípico, tampouco inconstitucional devendo ser normalmente aplicado, mesmo porque, o entendimento de que tal artigo fosse inconstitucional não restou amparado sequer pela Corte brasileira”.
O MP paulista explicou, ainda, que não se pode falar em abolitio criminis, “vez que estamos diante de um crime que, apesar de não estar apenado com a privação ou a restrição da liberdade, possui preceitos secundários próprios ao tipo penal, o qual obteve uma construção legiferante com escopo de distinguir o usuário do grande traficante de drogas, entretanto, sem prescindir da sanção correspondente, a qual restou configurada como as chamada penas alternativas”.
Coletividade e indivíduo
O promotor de Justiça André Luís Melo, que atua em Minas Gerais, arrisca um palpite: “Acredito que o STF, como tem compromisso com a sociedade, deve julgar o ato constitucional”. Para ele, a aprovação do pedido da Defensoria paulista equivale a uma “anistia geral”. “E não há como diferenciar de forma abstrata quem é usuário e quem é traficante, pois usam a modalidade de "tráfico formiguinha"”, diz.
Ele também acredita que “dizer que o delito está dentro da órbita particular, seria o mesmo que o Judiciário revogar crimes como a casa de prostituição. O Judiciário não pode revogar crimes, mas deve ter o seu ativismo repensado e redimensionado, pois cabe ao Legislativo definir os crimes e as penas, por meio da lei”.
Seu discurso é próximo ao do MP paulista: “O uso de droga não provoca dano apenas ao usuário, mas à família e à sociedade em razão de crimes violentos para manter uso, aparato de segurança, tratamentos de saúde e atendimentos sociais”.
Foi um entendimento semelhante que a juíza Patrícia Helena Hehl Forjaz de Toledo, da 2ª Vara Criminal, manifestou. Segundo ela, “pune-se o porte de droga para uso próprio, não em função da proteção á saúde do agente, mas sim em razão do mal potencial que pode gerar á coletividade”. E mais: “A pequena quantidade de substância tóxica, mesmo quando classificada como leve, não implica necessariamente que o juízo deva acatar o chamado principio da insignificância, em favor do acusado, porque todo delito associado a entorpecentes, independentemente de sua gravidade, constitui um risco potencial para a sociedade".
Um dos maiores especialistas em política de drogas do Brasil, o criminalista Salo de Carvalho, acredita que o julgamento chega em “momento adequado”. Explica-se. Em 2009, a Suprema Corte Argentina entendeu que a liberdade individual, desde que não cause danos a outras pessoas, deve ser priorizada.
Eles declararam inconstitucional o parágrafo 2º do artigo 14 da Lei 23.737 daquele país, que punia criminalmente pessoas que fossem flagradas com quantidades pequenas de drogas, supostamente para consumo pessoal. Os ministros entenderam, com base em tratados internacionais, que o direito à privacidade impede que as pessoas sejam objetos de ingerência arbitrária ou abusiva na esfera privada, como noticiou a Consultor Jurídico na época.
Além disso, o criminalista lembra que a Europa também vem presenciando experiências de descriminalização. Em Portugal, por exemplo, por decisão do Legislativo, há dez anos o porte não é mais crime. “Isso possibilita, inclusive, o acesso à saúde”, conta.
Na mesma linha de pensamento, o criminalista Pedro Abramovay, professor da FGV Direito Rio, conta que o Supremo vem enfrentando dispositivos polêmicos da Lei de Drogas. Nessa leva, já reconheceu como aplicáveis a substituição da pena e a liberdade provisória para os usuários. Ainda assim, prefere não apostar em um resultado. “Acredito que os ministros vão julgar não a partir da ideologia, mas sim a partir da garantia dos direitos individuais”, conta. Abramovay, que perdeu o cargo de secretário de Política Nacional sobre Drogas no governo da presidente Dilma Rousseff por defender um tratamento mais liberal para os usuários de droga, entede que “o propósito do Direito Penal não é proteger alguém de fazer mal a si mesmo”. “Há uma confusão aí”.
Autor do livro A Política Criminal de Drogas no Brasil, que chegou à sua quinta edição, Salo de Carvalho explica que o importante é investir na redução de danos. “As punições geram mais problemas do que vantagens. Impede, por exemplo, que o dependente se cuide e gera problemas para aquele que não tem um uso problemático” Ele também diz que a não tipificação da conduta não vai aumentar o consumo. “É ilusório pensar assim”, diz.
O também criminalista Thiago Gomes Anastácio, associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa, diz que a questão a ser discutida pelo Supremo engloba dois conceitos. Um, abstrato, que é a saúde pública. E, o outro, a ideia de que todo cidadão tem o direito de fazer o que bem entender. Ele lembra ainda que há outra questão a ser levada em consideração. “Se o Estado libera o uso da droga, é ele quem deve arcar com o custo do tratamento?”, indaga, sem oferecer resposta.

sábado, 14 de janeiro de 2012

DIREITO DEVE SER APLICADO SEGUNDO REGRAS MORAIS

Por Jessé Torres Pereira Junior

Desde os primórdios da construção do estado de direito que se discute se cabe ao poder judiciário o controle das condutas humanas em face de regras morais. É que, a partir da afirmação do caráter laico do estado, fruto da separação entre estado e igreja, no século XVIII, adotou-se como premissa a de que direito e moral ocupam círculos concêntricos, mas não se misturam, por isto que à ordem jurídica não interessariam os postulados morais que as leis não transformassem em normas exigíveis de conduta, com o efeito de afastar do controle judicial o ato imoral que não colida com a legislação vigente ou se revista de aparente licitude formal.
Quando condutas situadas na fronteira entre moralidade e direito chegam ao julgamento pelo judiciário, a questão de fundo reedita a velha questão. É o que se extrai das manifestações de acusação e de defesa, formuladas por analistas de variada formação e veiculadas pelo mais recente noticiário jornalístico, acerca de quatro assuntos que se repetem: aplicação de verbas públicas na realização de objetivos diversos daqueles fixados em convênios celebrados entre órgãos públicos e entidades privadas; uso de recursos do erário ou de sociedades empresárias para a cooptação de apoios políticos, tendentes a fazer prevalecer interesses unilaterais, com a aparência de interesse público; destinação preferencial de recursos a estados onde ministros pretendam favorecer projetos políticos pessoais ou partidários; exercício de controles internos sobre os próprios membros do judiciário, quando sob suspeita de condutas incompatíveis com a magistratura.
O interesse que esses assuntos tem provocado traduz nova postura da sociedade, exigente de controles aptos a coibir violações antes morais do que jurídicas, desde que comprovadamente caracterizadas. Ao interesse se segue a incerteza: estariam os juízes preparados para aceitar que tais questões também cabem no controle judicial e que, cabendo, as julgariam de acordo com a nova postura?
A resposta há de ser dada com os olhos postos nas transformações que, a partir do século XX, vêm moldando novos paradigmas de controle jurídico da gestão pública.
As sociedades do pós-guerra 1939-45 se dão conta progressiva de que sua escassa participação na avaliação das chamadas “razões de estado” e de que a proibição de controles sobre atos fundados na estrita discrição da autoridade - isto é, pouca democracia e muito autoritarismo - permitem que agentes públicos, sejam os políticos ou os administrativos, empreendam ações governamentais dissociadas das necessidades reais e dos interesses autênticos das populações a que se deveriam destinar, com efeitos conhecidos: programas e projetos de inadequada relação custo-benefício e finalidades desviadas do interesse público.
As constituições promulgadas no período, de que são exemplos as de Alemanha, Itália, Espanha e Portugal — não por acaso, nações que experimentaram modelos extremados de concentração autoritária do poder político, ao longo dos anos 1900 (nazismo, fascismo, franquismo e salazarismo) -, estabelecem em seu próprio texto políticas públicas limitadoras da discricionariedade e cuja execução possa ser objeto de controles efetivos pelas instituições incumbidas de aferir-lhes os resultados e retificar-lhes eventuais desvios, entre as quais o poder judiciário. Tal técnica nada mais é do que estratagema para limitar o exercício do poder.
Com a Constituição de 1988, não foi diferente. Até porque também aqui se viveu período de forte concentração do poder político.
Das definições lançadas no texto constitucional até a sua absorção e observância cotidiana, porém, vão consideráveis distância e número de emendas. Mais de vinte anos e quase setenta emendas constitucionais se passaram e o que se vê, na realidade brasileira atual, é a busca da afirmação dos novos paradigmas, a que, contudo, resistem pessoas, corporações e culturas.
Quanto à configuração desses paradigmas, não subsiste, no direito público ocidental contemporâneo, divergência relevante no concernente à sua essência, em qualquer dos poderes constituídos do estado e independentemente de filiações político-partidárias, a saber:
O patrimonialismo (uso privado do que é público) deve ceder ao compromisso com os resultados de interesse público, mensuráveis mediante indicadores objetivos e de acesso democratizado;
Toda ação governamental deve cumprir o ciclo da gestão técnica (planejamento, execução, controle e avaliação);
Não pode prevalecer a discricionariedade administrativa onde houver política pública traçada na Constituição, a que se deve reconhecer supremacia;
Todos os atos dos agentes públicos, incluídos os providos de discricionariedade, devem explicitar os seus motivos (razões de fato e de direito que justificam a conduta) e sujeitar-se a controles institucionais e sociais sobre a sua veracidade e idoneidade, inadmissíveis nichos de irresponsabilidade;
Os princípios, norteadores do sistema jurídico, entre os quais os da moralidade e da eficiência, encontram na Constituição sua sede principal e devem ser considerados normas jurídicas de eficácia imediata e providos de sanção para o caso de descumprimento, e, não, apenas, proposições gerais, impessoais e abstratas, de índole programática.
Quanto à concretização, tais paradigmas suscitam perplexidades e divergências na travessia para a prática das instituições e de seus agentes.
Se, por um lado, é nova a extensão desse controle, não o é o debate acerca de sua natureza.
A resolução da antiga polêmica sobre as relações entre direito e moral conhece orientação que, já em 1930, lhe imprimia Georges Ripert, professor da Faculdade de Direito e da Escola de Ciências Políticas de Paris, em obra laureada, na qual rebatia a separação de seus respectivos círculos, ao examinar a presença da regra moral nos contratos. Assim:
“Percorrendo as decisões dos tribunais, eis os preceitos que se podem encontrar e dispor sob forma imperativa...: não procurarás tirar proveito do teu deboche ou de outrem; não enriquecerás injustamente... por astúcia ou pela força ou por embuste, mesmo que este não seja punível; não farás por interesse o que deves fazer por dever; não estipularás remuneração por atos que não devam ser pagos; não obterás por dinheiro uma impunidade culpável... A jurisprudência... não fez mais do que retomar e completar a obra dos canonistas, que tinha já marcado no direito ‘um progresso do espírito de moralidade".
A jurisprudência não acolheu o contrato como um ato abstrato que tirasse a sua força da vontade, mesmo quando esta objetivasse um fim ilícito, ou fosse inspirado por um desígnio imoral, mas, pelo contrário, pedindo contas às partes dos seus motivos, perscrutando as suas intenções, ligando o contrato ao fim que o determinou, recusou consagrar a realização de um pensamento culpável... Violação da liberdade de consciência? Não me consta que essa liberdade implique o direito de concretizar o pensamento imoral num ato que lhe deve dar satisfação. Digamos simplesmente: intervenção necessária do juiz para assegurar o respeito de um princípio do qual o legislador não podia precisar a aplicação” (A regra moral nas obrigações civis, pp. 74 e 83. Ed. Bookseller, 2000, trad. Osório de Oliveira).
Advertia Ripert que “a regra moral pode ser estudada na sua função normativa quando vem impedir o abuso da forma jurídica que se queira utilizar para fins que a moral reprova. Contra o princípio da autonomia da vontade ela cria a necessidade devida ao contratante que se encontra em situação de inferioridade e que é explorado pela outra parte; ensina que a justiça deve reinar no contrato e que a desigualdade das prestações pode ser reveladora da exploração dos fracos; lança a dúvida sobre os acordos que são a expressão duma vontade demasiado poderosa dominando uma vontade enfraquecida. A moral ensina também que é preciso inquietarmo-nos com os sentimentos que fazem agir os assuntos de direito: proteger os que estão de boa-fé, castigar os que agem por malícia, má-fé, perseguir a fraude e mesmo o pensamento fraudulento.
O dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de se não enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação do enriquecimento sem causa. Não se adiante muito mais quando, renunciando a distinguir em toda a sua extensão os domínios do direito e da moral, se tenta caracterizá-los por meio das regras: o direito propondo-se à ordem e não se ocupando senão das ações; a moral ocupando-se das intenções e propondo-se ao aperfeiçoamento interno individual. Se o direito se ocupa das ações, não é indiferente às intenções e seria singularmente paradoxal dizer que ele tem por missão a proteção dos corpos e não a das almas; se ele se desinteressa pelo aperfeiçoamento moral do indivíduo, deixa de ter o seu papel na sociedade. Não existe na realidade, entre a regra moral e a regra jurídica, nenhuma diferença de domínio, de natureza e de fim; não pode mesmo haver, porque o direito deve realizar a justiça, e a ideia do justo é uma ideia moral. Mas há uma diferença de caráter. A regra moral torna-se regra jurídica graças a uma injunção mais enérgica e a uma sanção exterior necessária para o fim a atingir” (pp 24-27).
Na jurisprudência brasileira contemporânea, a regra moral tem sido a chave para resolver um sem número de conflitos cíveis, de que decorram danos materiais (perda ou diminuição patrimonial), cumulados ou não com danos morais (lesão a direitos da personalidade, tais como honra, nome, imagem, crédito, integridade física e psicológica), seja nas relações contratuais ou extracontratuais, com ou sem a participação do poder público.
Aos adeptos da legalidade estrita, como barreira à aplicação da regra de moralidade, recorde-se que os princípios que homenageiam a boa-fé objetiva e vedam o enriquecimento sem causa passaram a constituir, igualmente, regras jurídicas, acolhidos que foram nos artigos 113 e 884 do Código Civil de 2002, além de figurarem entre as normas do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, autorizando o juiz a invalidar contratos ou declarar a nulidade de cláusulas abusivas. E que a transgressão culposa de princípios por agentes públicos constitui ato de improbidade administrativa, segundo o disposto no artigo 11 da Lei 8.429, de 1992.
Na jurisprudência penal, nada obstante o devido prevalecimento do princípio da reserva legal (não há crime sem lei anterior que o defina) e das garantias da ampla defesa e do contraditório em processo regular, várias são as questões que suscitam divergências de interpretação na aplicação da norma punitiva, conforme se acentue ou se atenue a reprovação moral às circunstâncias em que se materializou o delito imputado ao acusado.
Diante das expectativas que as constituições contemporâneas despertam nas sociedades e os valores por estas reconhecidos, os juízes e tribunais devem estar qualificados para aplicar o direito segundo regras de moralidade, seja nas convenções entre particulares ou nas relações públicas. Legítimo que o façam em todos os processos, de qualquer porte e repercussão. Mormente quando tais processos houverem de ser julgados pelas Cortes Superiores, cujas decisões assentam paradigmas de elevado efeito pedagógico e multiplicador para todo o sistema judiciário, a reforçar o conceito que, na cultura jurídica brasileira, deixou Clovis Bevilacqua, mentor do Código Civil de 1916: “A Justiça é o Direito iluminado pela moral”.