terça-feira, 30 de julho de 2013

A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470

Aliomar Baleeiro explicou certa vez, em notável reflexão sobre o trabalho do STF: “Se há coisa em que falhamos é não termos provocado, dos juristas, das universidades, das Ordens de Advogados e dos cidadãos, uma crítica permanente às nossas opiniões e aos nossos trabalhos”.
Pois bem, queiramos ou não, com o julgamento da Ação Penal 470, a Corteprovocou a crítica. Suas cores, tons e duração serão frutos do labor do tempo, mas a verdade é que a comunidade jurídica fez do acórdão objeto de intensos estudos, debates e análises. Até mesmo cursos e seminários levam em seu nome a célebre ação.
Dentro desse contexto, continuamos a tecer algumas considerações a respeito da decisão do STF, nesse momento, sobre o elemento subjetivo do tipo penal de lavagem de dinheiro.
Há tempos a doutrina se divide sobre a admissibilidade do chamado dolo eventual para este delito. Pelas regras legais, se o agente desconhece a procedência infracional dos bens ocultados ou dissimulados, faltar-lhe-á o dolo da prática de lavagem e a conduta será atípica mesmo se o erro for evitável, pois não há previsão da lavagem culposa. Assim, se o agente não percebe a origem delitiva do produto que mascara por descuido ou imprudência, não pratica lavagem de dinheiro, respondendo penalmente o terceiro que determinou o erro, se existir (parágrafo 2º do artigo 20 do Código Penal).
Questão mais complexa é: qual o grau de consciência exigido do agente sobre a procedência dos bens? É suficiente que ele desconfie da origem infracional (dolo eventual) ou se faz necessária aconsciência plena da proveniência ilícita do produto?
Há quem sustente que apenas pratica lavagem de dinheiro aquele que tem plena ciência da origem delitiva dos bens (dolo direto).[1] Nessa linha, a Convenção de Viena (artigo 3, 1, b), de Palermo (artigo 6, 1) e a Directiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (26/10/2005) (artigo 1, 2, a e b), indicam que apenas quem tem conhecimento da proveniência dos bens pratica lavagem de dinheiro.
Por outro lado, há quem afirme que basta a mera suspeita da origem infracional (dolo eventual) para que se afaste o erro de tipo.[2] Nesse sentido, a Convenção de Varsóvia (2005) indica que os Estados-membros da Comunidade Europeia podem tomar medidas para entender como crime os casos de lavagem em que o agente suspeitava da origem ilícita dos bens ou deveria conhecer a origem ilícita dos bens, indicando a possibilidade da prática do crime a título de dolo eventual ou mesmo de imprudência (artigo 9, 3).
Como já expusemos em outra oportunidade[3], entendemos que o agente deve ter consciência clarada origem ilícita dos bens para a lavagem de dinheiro na forma do caput do artigo 1º, sendo o dolo eventual admissível apenas nos casos descritos no parágrafo 2º, inciso I da Lei.
Aceitar o dolo eventual para todas as formas de lavagem de dinheiro não parece adequado do ponto de vista político criminal porque resultaria na imposição de uma carga demasiado custosa àqueles que desempenham atividades no setor financeiro, afinal, sempre será possível encontrar algumindício de mácula na procedência do capital de terceiros com o qual se trabalha, à exceção dos casos em que a licitude original é patente.
A falta de informações sobre a fonte do dinheiro pode gerar desconfiança, ao mesmo tempo em que a fungibilidade do bem impede — em geral — o reconhecimento seguro de sua procedência. Mesmo que sejam adotadas medidas de averiguação do cliente e da operação, nos termos dos atos regulatórios em vigor, sempre — ou quase sempre — haverá espaço para dúvida, e tal dúvida poderá, em um campo semântico alargado, indicar suspeita. Por isso, nos parece que a tipicidade subjetiva da lavagem de dinheiro na forma do caput do artigo 1º é limitada ao dolo direto, sendo odolo eventual admissível apenas nos casos descritos no parágrafo 2º, inciso I da Lei.
No entanto, não parece ter sido esta a orientação do STF por ocasião do julgamento da Ação Penal em discussão. Alguns ministros rechaçaram expressamente o dolo eventual na lavagem de dinheiro, ao menos diante do texto legal anterior[4], mas a maioria admitiu esta modalidade, reconhecendo-a como possível mesmo na redação da Lei 9.613/1998 em vigor à época da prática dos fatos julgados[5].
Seja como for, a leitura das manifestações deixa claro que — para os integrantes da Suprema Corte — o novo texto da lei de lavagem de dinheiro admite o dolo eventual em todas as formas de lavagemde dinheiro[6]. Por isso, parece necessário conceituar tal categoria dogmática, para que sua aplicação seja balizada por critérios precisos.
Tem dolo eventual o agente que suspeita da origem ilícita dos bens com os quais trabalha, mas não tem certeza sobre tal fato. Assim, aquele que envia ao exterior (a uma empresa off-shore) valores não declarados, sobre os quais exista fundada suspeita de origem criminosa, pratica lavagem de dinheiro dolosa (sob a ótica do dolo eventual).
No entanto, não é qualquer suspeita que sustenta o dolo eventual. Ainda que careça da vontade de resultado e da ciência plena da origem ilícita do bem, o dolo eventual exige a consciência concreta do contexto no qual se atua. Como ensina Roxin, não basta uma consciência potencial, marginal, ou um sentimento.[7] É preciso mais: é necessária uma percepção clara das circunstâncias, uma compreensão consciente dos elementos objetivos que justifiquem a duvida sobre a licitude dos bens. Deve-se averiguar se o agente percebeu o perigo de agir, e se assumiu o risco de contribuir para um ato de lavagem.[8] A mera imprudência ou desídia não é suficiente para o dolo eventual. Nesse sentido, a ministra Rosa Weber:
“Admitindo-se o dolo eventual, viabiliza-se uma resposta penal apropriada a esse fenômeno (da lavagem de dinheiro) sem ir ao extremo de prescindir da ciência pelo agente da lavagem da elevada possibilidade da procedência criminosa do objeto da transação (folha 1.300 do acórdão, sem grifos no original)
Porém, algo mais deve ser levado em consideração. Parte da doutrina e da jurisprudência equiparam ao dolo eventual a chamada cegueira deliberada (wilfull blindness). Trata-se de instituto de origem jurisprudencial norte-americana pelo qual se aceita como dolosos os casos em que o agente se coloca em uma situação proposital de erro de tipo. Assim, tem dolo de lavagem de dinheiro não apenas o agente que conhece (dolo direto) ou suspeita (dolo eventual) da origem ilícita do capital, mas também aquele que cria conscientemente uma barreira para evitar que qualquer suspeita sobre a origem dos bens chegue ao seu conhecimento[9].
Para ilustrar: se o diretor financeiro de uma instituição bancária determina expressamente a seus gerentes que não o informem de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, poderá ser condenado pela prática desse crime, por cegueira deliberada, pois criou conscientemente um mecanismo que veda a chegada ao seu conhecimento de qualquer dúvida sobre a licitude dos bens que processa.
A nosso ver, se a admissão do dolo eventual na lavagem de dinheiro já parece pouco recomendável, seu reconhecimento na forma de cegueira deliberada parece ainda menos adequada a um sistema penal pautado pelo princípio da culpabilidade.
No entanto, a cegueira deliberada foi ao menos tangenciada por integrantes do STF, nos autos da Ação Penal 470, apontando para sua possível admissão no cenário jurídico nacional. O ministro Celso de Mello chegou a admitir expressamente a adoção da cegueira deliberada no crime de lavagem de dinheiro, como indica Informativo do STF:
Ato contínuo, o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.[10]
No mesmo sentido, a ministra Rosa Weber à folha1.273 do acórdão, discorreu sobre a teoria, admitindo sua utilização.
Diante da possível aceitação da cegueira deliberada pela jurisprudência pátria, algumas cautelas — recomendadas pela doutrina de países mais íntimos do instituto - devem ser tomadas em sua aplicação[11].
Em primeiro lugar, para a cegueira deliberada é essencial que o agente crie consciente evoluntariamente barreiras ao conhecimento, com a intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, caso ela ocorra. O diretor de uma instituição financeira não está em cegueira deliberada se deixa de se certificar de todas as operações do setor de contabilidade a ele subordinada, e se contenta apenas com relatórios gerais. A otimização da organização funcional da instituição não se confunde com a cegueira deliberada. Por outro lado, se o mesmo diretor desativa o setor de controle interno ou de prevenção à lavagem de dinheiro, e suspende seus procedimentos mais relevantes de monitoramento, pode criar uma situação de cegueira deliberada.[12].
Em síntese, a cegueira deliberada somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento da proveniência ilícita de bens.
Mas, para além disso, há um segundo requisito: o agente deve perceber que a criação das barreiras de conhecimento facilitará a prática de atos infracionais penais. Assim, se o agente não quer conhecer a procedência dos bens, mas representa como provável sua origem delitiva, haverá cegueira deliberada. Por outro lado, se lhe faltar a consciência de que tais filtros o impedirão de ter ciência de atos infracionais penais, fica “absolutamente excluído o dolo eventual”.[13] Assim, se um doleiro cria mecanismos para que não lhe cheguem notícias sobre a origem dos bens que manipula porque percebe que podem ser provenientes de ilícitos administrativos — sem representar em absoluto que possam ser oriundos de infrações penais — não haverá dolo eventual em relação à lavagem de dinheiro. Por outro lado, se o diretor de instituição financeira suprimir os sistemas decompliance e desativar mecanismos de comunicação, representando a possibilidade da prática de lavagem de dinheiro, haverá dolo eventual pela cegueira deliberada.[14]
Por fim, é necessário que a suspeita de que naquele contexto será praticada lavagem de dinheiro seja escorada em elementos objetivos. A possibilidade genérica que os usuários do serviço ou atividade praticarão mascaramento de capital não é suficiente. São imprescindíveis elementos concretos que gerem na mente do autor a dúvida razoável sobre a licitude do objeto sobre o qual realizará suas atividades. Como ensina Blanco Cordero, é preciso suspeita, probabilidade de realização e verificação da evitabilidade para a cegueira deliberada.[15]
Em síntese, a cegueira deliberada somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criaçãoconsciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação recair sobre atos de lavagem de dinheiro.
Também a ministra Rosa Weber entendeu — em seu voto na Ação Penal em estudo — prudente a adoção de critérios para a aplicação da cegueira deliberada, dentre os quais, i) a ciência do agente quanto a elevada probabilidade de que bens, direitos ou valores provenham de crimes; ii) o atuar de forma indiferente a esse conhecimento; iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa (folha1.273 do acórdão).
Assim, a cegueira deliberada parece encontrar espaço potencial na jurisprudência pátria. Embora a teoria tenha sido mencionada de passagem por poucos ministros, seus fundamentos não foram rechaçados, apontando para uma possível incorporação ao conceito de dolo das situações em que o agente não conheça os elementos típicos por deliberação expressa.
Tal incorporação — como dito — parece preocupante, uma vez que caracterizará como dolosos comportamentos ontológica e normativamente diferentes. Será dolosa a ação típica na qual o agenteconheça o contexto no qual atua e queira o resultado, bem como aquela na qual o sujeito não queira o resultado e nem mesmo conheça a criação do risco porque criou mecanismos que lhe impediram a ciência deste. Ainda que ambos sejam reprováveis, caracterizar os dois da mesma forma sobrecarrega o instituto do dolo e afeta a proporcionalidade na aplicação da norma penal.
Nessa linha, vale a anotação de Ragués y Vallés, ao tratar da cegueira deliberada na Espanha, país que adota conceitos dogmáticos similares aos brasileiros. O autor aponta para a necessidade de repensar as categorias de dolo e culpa, indicando a possibilidade de criar novas modalidades deimputação subjetiva, com consequências jurídicas diferentes. Com isso, evitar-se-ia o alargamento dodolo para abrigar situações evidentemente dispares, como o dolo direto e a cegueira deliberada, com todos os problemas de proporcionalidade envolvidos nesta equiparação[16].
Assim, talvez melhor que equiparar o dolo eventual à cegueira deliberada, seja a criação legislativa de novas modalidades de imputação subjetiva, para além do dolo e da culpa, com patamares distintos de punição para cada categoria, evitando-se o alargamento e a imprecisão dos institutos e garantindo-se a proporcionalidade na aplicação da pena.
Seja como for, a decisão do STF abre espaço para a cegueira deliberada, exigindo do intérprete e do acadêmico reflexões urgentes sobre o tema, em especial diante dos institutos jurídicos nacionais.

[1] Barros, Lavagem de capitais, p. 59, Callegari, Lavagem de dinheiro, p. 164, Podval, Lavagem de dinheiro, p. 2100, Pitombo, Lavagem de dinheiro, p. 137. Ainda que não mencione expressamente odolo eventual, Reale Jr. caracteriza o dolo da lavagem a partir do conhecimento da origem ilícita, apontando que o agente deve agir com convicção de que o bem sobre o qual atua é ilícito (Figura típica e objeto material do crime de “lavagem de dinheiro”, p. 559-575).
[2] Maia admite dolo eventual diante da ausência de qualquer restrição – diferente do que ocorre com a receptação, Lavagem de dinheiro, p. 88; Bonfim e Bonfim, Lavagem de dinheiro, p. 46; De Carli, Dos crimes, p. 188. Admitem ainda dolo eventual, Moro, Crime de lavagem de dinheiro, p. 62; Prado, Dos crimes: aspectos subjetivos, p. 228. Delmanto, Leis penais especiais comentadas, p. 559-564; Sanctis, Combate à lavagem de dinheiro, p. 49; Oliveira, A criminalização da lavagem de dinheiro. p. 112-129; Pereira, Lavagem de dinheiro: Compatibilidade com o dolo eventual?, p. 32-44.
[3] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à lei 9.613/1998 com as alterações da Lei 12.683/2012.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 92.
[4] Nesse sentido, o Min. Ricardo Lewandowsky (fls.3736 do acórdão),Min. Dias Toffoli, indicando que é preciso refletir se a nova legislação permite o dolo eventual (fls.3273 do acórdão)
[5] Nesse sentido, a Min. Rosa Weber (fls.1273 do acórdão), a Min. Carmen Lucia, às fls.2081 do acórdão (embora aponte em alguns trechos a necessidade do agente saber da ocorrência de um dos crimes antecedentes, como às fls.2082 do acórdão), o Min. Luiz Fux (fls.3188 do acórdão), o Min. Celso de Mello (embora não publicadas suas manifestações a respeito no acórdão, parece ser essa a linha de seu raciocínio descrita no Informativo STF n.677) e o Min. Ayres Britto (fls.3425 do acórdão).
[6] Posição que, a nosso ver, não parece a mais adequada
[7] ROXIN, Derecho penal, p. 472.
[8] ROXIN, Derecho penal, p. 447.
[9] Para uma visão detalhada do instituto, BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 3. ed., Cap.VII, 3.3; PRADO, Dos crimes: aspectos subjetivos, p. 237 e MORO, Crime de lavagem de dinheiro, p. 69.
[10] Informativo 684, sem grifos.
[11] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à lei 9.613/1998 com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 94.
[12] Idem, ibidem.
[13] Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 3. ed., Cap.VII, 3.3.
[14] Idem, ibidem.
[15] El delito de blanqueo de capitales, Cap.VII, 3.2.
[16] RAGUÉS Y VALLES, Ramon. La ignorância deliberada em derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007, pg. 209.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Mudança proposta para prisão civil favorece devedor

Encontra-se em discussão no Congresso, como é sabido, projeto que cria um novo Código de Processo Civil, em substituição àquele que vige desde o ano de 1973.
No que se refere, mais especificamente, à prisão civil por dívida alimentícia, o projeto de lei original (PL 8.046/2010), em seus artigos 514 a 518, praticamente mantinha o texto em vigor, sobretudo no que diz respeito à prisão do devedor.
O relatório do deputado Paulo Teixeira, porém, trouxe relevantes inovações sobre a matéria. Assim, em seu artigo 542, reza que, intimado o executado, caso não pague ou, justificando a inércia, tenham sido refutados seus argumentos, ser-lhe-á decretada a prisão. Já no parágrafo 3° do mesmo artigo — e aí a inovação — dispõe que:
A prisão será cumprida em regime semiaberto; em caso de novo aprisionamento, o regime será o fechado. Em qualquer caso, o preso deverá ficar separado dos presos comuns; sendo impossível a separação, a prisão será domiciliar.
A justificativa ofertada no relatório do parlamentar é no sentido de que “a prisão civil do devedor de alimentos deve ser decretada, primeiramente, pelo regime semiaberto, de modo a viabilizar que o devedor preso saia do estabelecimento a que tenha sido recolhido a fim de trabalhar e obter os meios necessários para efetuar o pagamento”. E prossegue: “apenas no caso de persistência do inadimplemento é que se poderá cogitar de prisão pelo regime fechado”.
Cumpre apontar o equívoco dessa opção.
De início, ressalte-se o que parece um mau emprego, pelo relator, da expressão “regime semiaberto”. Com efeito, regime semiaberto, na dicção do artigo 33, parágrafo 1°, “a” do Código Penal, é aquele cujo cumprimento da pena se dá em “colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar”. Se a intenção, como consta da justificativa do parlamentar, é de permitir o trabalho do executado e, com os frutos desse trabalho, propiciar o pontual pagamento dos alimentos, melhor seria a adoção do regime aberto, notadamente quando é conhecida a carência de colônia agrícolas, industriais ou similares, para desconto da pena no regime semiaberto.
Creio, a partir de tais premissas, que para atender aos fins alvitrados no relatório, mais adequada seria a indicação do regime aberto para desconto da pena que, nos termos do parágrafo 1° do artigo 36 do Código Penal, permite o trabalho do preso durante o dia com seu recolhimento, à noite, ao estabelecimento penal.
Com tal observação, penso que, ainda assim, não há razões plausíveis que justifiquem essa inovação.
Destaque-se, de plano, a notável eficácia da prisão civil. Nos mais de 15 anos de minha experiência como promotor de justiça atuando perante vara de família, tenho me deparado com devedores que, após se jactarem que preferem ir presos a pagar os alimentos, quando efetivamente decretada a prisão, não permanecem mais de um ou dois dias encarcerados. Com efeito, não se sabe de que forma, mas o certo é que o dinheiro, antes inexistente, aparece e, com isso, abdicando do blefe, vêem restabelecida sua liberdade.
Assim, conquanto se reconheçam os efeitos deletérios de toda e qualquer prisão, na medida em que, por definição, priva a pessoa de sua liberdade, não se pode negar, de outra parte, o sucesso do mecanismo, cujo principal objetivo não é punitivo, senão de propiciar a sobrevivência do alimentado, com a percepção daquilo que lhe é devido.
Nessa linha de raciocino, segundo Yussef Said Cahali a prisão civil por dívida “é o único meio eficaz em condições de remover a recalcitrância de grande número de devedores inadimplentes” (1).
Pois bem. A adoção do regime semiaberto para cumprimento da prisão civil, retira, sob minha compreensão, a reconhecida eficácia desse instituto e, pior, importa em verdadeiro estímulo ao descumprimento da obrigação.
Ressalte-se de pronto, nessa ordem de ideias, a reconhecida incapacidade estatal na fiscalização do cumprimento de penas no regime semiaberto (ou aberto, como parece mais adequado, como dito acima). Ora, se nem os condenados pela prática de crimes são devidamente fiscalizados ou, em outras palavras, se não se sabe ao certo se depois de trabalharem durante o dia, efetivamente se recolhem à noite (notadamente quando adotada, como usualmente se adota, a chamada “prisão domiciliar”, expressamente prevista na inovação), que se esperar, então, dos presos oriundos de dívida alimentar ?
Mas mesmo que cumpram corretamente essa modalidade de prisão, quanto não preferirão o recolhimento noturno a ter que pagar os alimentos ?
É dizer: toda a força coercitiva da prisão civil, cumprida em regime fechado, se perderá caso acolhida a proposta de mudança, nada justificando a alteração de um mecanismo que se tem revelado tão eficaz. De tamanha eficácia — insiste-se — que raramente algum devedor cumpre a totalidade da prisão civil, apressando-se, antes, em quitar o seu débito. Em suma: cuida-se de novidade que apenas privilegiará o devedor em detrimento dos mais necessitados que recebem (ou deveriam receber) alimentos.
Não se ignora que o texto sugerido no relatório prevê a possibilidade de imposição do regime fechado, “em caso de novo aprisionamento”. Admito que não apreendi, exatamente, o alcance dessa ressalva.
É que a decretação da prisão em regime fechado após seu cumprimento em regime semiaberto, mostra-se inviável, por não se admitir que o mesmo título dê ensejo a duas prisões diversas, vedada, por isso, a renovação da prisão. Embora certo que o cumprimento da pena não livra o devedor do débito (artigo 733, parágrafo 2° do CPC), autorizando, bem por isso, o prosseguimento da execução, esta deverá, agora, se processar sob pena de penhora, posto que solução diversa configuraria quase que uma prisão perpétua, em hipótese que já foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, a se conferir:
Não é possível decretar nova prisão relativa aos débitos vencidos durante a execução, e que já foi alcançada pela prisão anterior, sob pena de tratar-se de prorrogação que poderia conduzir à prisão perpétua, vedada no ordenamento jurídico brasileiro (2).
Se for assim é mais um ponto desfavorável à inovação, pois obrigaria o alimentante a alterar o rito da execução, atentando contra a celeridade que caracteriza o processo, em face da urgência que lhe é peculiar.
Uma interpretação que talvez se possa extrair do texto é que o “novo aprisionamento” decorra de execução diversa. Tento explicar: em uma primeira execução, deixando de pagar o devido ou afastada a justificativa do devedor, ele teve decretada a prisão no regime semiaberto. Já em uma segunda execução, referente a período diverso daquele reclamado inicialmente, não mais se admitiria esse favor, impondo-se a prisão no regime fechado. Embora possa parecer a única interpretação plausível ao dispositivo, nada justificaria a concessão de uma primeira oportunidade para o devedor para que, somente na segunda vez, fosse ele preso no regime fechado.
Por conta de tais argumentos é que não vislumbro qualquer vantagem que se possa extrair (senão para o devedor) com a alteração em análise, razão pela qual, a meu ver, deve ser mantida a disciplina atual no que tange à prisão civil decorrente de alimentos, prevista no artigo 733 do CPC, que de há muito cumpre sua finalidade de garantir a sobrevivência do alimentado.
Notas:
(1) Dos Alimentos. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: RT, 2002, p. 1.004.
(2) REsp 658823-MS – Rel. Min. Menezes Direito, 3ª. T., j. 17.05.2007, DJ 06.08.207, p. 485.

domingo, 28 de julho de 2013

Prática de agiotagem não impede execução de contrato de empréstimo

Em decisão unânime, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que a prática de agiotagem, por si só, não impede a execução de contrato de empréstimo.

Para os ministros, a prática de agiotagem deve ser combatida, mas não é viável declarar a nulidade do contrato de empréstimo se o mutuário foi efetivamente beneficiado pela parte legal do negócio.

Assim, quem recebe devidamente o valor do empréstimo não pode se esquivar de honrar sua obrigação de pagar o valor recebido, acrescido dos juros legais, com a exclusão apenas do montante indevido conforme prevê a Lei da Usura (Decreto 22.626/33).

Agiotagem
O autor do recurso negado é um cidadão do Rio de Janeiro fez um empréstimo de R$ 70 mil junto a uma empresa que realizava operações financeiras sem autorização do Banco Central. Mediante contrato simulado, para não figurar a cobrança de juros acima do legalmente permitido, pessoas físicas que substituíram a empresa no contrato registraram que a quantia emprestada foi de R$ 98,2 mil, com juros moratórios de 1% ao mês, totalizando aproximadamente R$104 mil.

Diante da inadimplência no pagamento do empréstimo, os credores entraram com ação de execução do contrato, que tinha hipoteca de imóvel como garantia. O devedor, então, decidiu recorrer à justiça com pedido de nulidade da execução, pela prática de agiotagem.

Esse acréscimo no valor do empréstimo efetivo – que passou de R$ 70 mil para R$ 98 mil – mascarou a cobrança de juros de 8,11% ao mês, configurando a prática de usura, conforme reconheceu a Justiça do Rio de Janeiro.

O juízo de primeira instância concluiu pela nulidade do negócio jurídico e extinguiu a execução. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, entretanto, reformou a sentença. No acórdão, a agiotagem foi reconhecida, mas a execução foi mantida com a readequação da dívida, que efetivamente era de R$ 70 mil, e dos juros aplicados.

Nulidade relativa
O devedor recorreu ao STJ pedindo que a sentença de primeiro grau fosse restabelecida. O ministro Raul Araújo, relator, lembrou em seu voto que na época em que foi feito o empréstimo estava em vigor o Código Civil de 1916, que incluía a simulação no rol das nulidades relativas, sendo possível o aproveitamento do negócio jurídico em sua parte válida.

Diante da comprovação do empréstimo, pelas instâncias ordinárias, com o devido repasse do valor pelos credores ao devedor, o ministro Raul Araújo entendeu que a decisão do tribunal estadual deveria ser mantida, uma vez que o devedor foi beneficiado pela parte legal do contrato.

“Se o mutuário recebeu devidamente o valor do empréstimo, não se pode esquivar, na condição de devedor, de honrar sua obrigação de pagamento do valor efetivamente ajustado, acrescido dos juros legais, mas desde que excluído o montante indevido, cobrado a título usurário”, disse o relator.

E AGORA JOAQUIM? Ajufe pede apuração sobre empresa de Barbosa nos EUA

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) se manifestou sobre a empresa criada na Flórida, Estados Unidos, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, para adquirir um apartamento na cidade de Miami, que tem como sede o imóvel funcional onde ele mora. Para o presidente Ajufe, Nino Toldo, o fato de a empresa estar sediada no imóvel funcional que Barbosa ocupa “é gravíssimo, do ponto de vista ético”. A notícia é do jornal Correio Braziliense.
Segundo ele, “não é dado a nenhum magistrado, ainda mais a um ministro do Supremo, misturar o público com o privado”. E completou: “Dos magistrados, espera-se um comportamento adequado à importância republicana do cargo, pois um magistrado, seja qual for o seu grau de jurisdição, é paradigma para os cidadãos”. Questionada a respeito da abertura de procedimento para averiguar a regularidade da operação, a Procuradoria-Geral da República não se manifestou.
A Ajufe defende a apuração “rigorosa” acerca das duas situações. “Um ministro do STF, como qualquer magistrado, pode ser acionista ou cotista de empresa, mas não pode, em hipótese alguma, dirigi-la”, afirmou o presidente da entidade, Nino Toldo, referindo-se ao artigo 36 da Lei Complementar 35. “Essa lei aplica-se também aos ministros do STF. Portanto, o fato de um ministro desobedecê-la é extremamente grave e merece rigorosa apuração”, ressaltou Toldo.
Além disso, o fato contraria o Decreto 980, de 1993. Segundo o Ministério do Planejamento, o inciso VII do artigo 8º da norma — que rege as regras de ocupação de imóveis funcionais — estabelece que esse tipo de propriedade só pode ser usado para “fins exclusivamente residenciais”.
Nos registros da Assas JB Corp., pertencente a Barbosa, no portal do estado da Flórida, nos Estados Unidos, consta o imóvel do Bloco K da SQS 312 como principal endereço da companhia usada para adquirir o apartamento em Miami — conforme informado pelo jornal Folha de S.Paulo no domingo passado. As leis do estado norte-americano permitem a abertura de empresa que tenha sede em outro país. A Controladoria-Geral da União (CGU) também assegurou que o Decreto 980 não prevê “o uso de imóvel funcional para outros fins, que não o de moradia”. O presidente do STF consta, ainda, como diretor e único dono da Assas Jb Corp. A Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35, de 1979), a exemplo da Lei 8.112/90, do Estatuto do Servidor Público Federal, proíbe que seus membros participem de sociedade comercial, exceto como acionistas ou cotistas, sem cargo gerencial.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Fisco vê má-fé em planejamento tributário

JULIO WIZIACK
MARIANA CARNEIRO
DE SÃO PAULO 

A Receita Federal montou uma operação de guerra contra grandes empresas que, amparadas pela legislação tributária, encontram formas de reduzir o imposto.
Juntas, essas companhias descontaram cerca de R$ 110 bilhões da base de cálculo de seu imposto, fazendo acender um sinal de alerta.
O fisco então passou a enquadrar essas operações como "planejamento tributário abusivo". "Elas romperam o limiar do possível", diz Iágaro Jung Martins, coordenador da fiscalização da Receita.
Auditores são 'rebaixados' após contestar Receita
Querem criminalizar uma prática legal, dizem advogados
A controvérsia levou centenas de corporações ao Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), no qual está sendo travada uma discussão que pode significar um rombo para o leão ou o fim de muitas empresas.
Algumas dessas companhias podem ter de arcar com grandes multas (a média é de R$ 500 milhões por empresa), mas há casos, como o do Santander, em que a autuação chegou a R$ 6 bilhões.
TROPA DE CHOQUE
A pressão contra as empresas começou em 2010, quando a Receita criou uma equipe especializada em identificar possíveis fugas fiscais. Hoje, esse time conta com uma centena de auditores, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.
Resultado: R$ 50 bilhões em multas contra 102 grandes empresas entre 2010 e 2012. Até 2010, haviam sido aplicadas 37. No primeiro trimestre deste ano, já são 34 os processos em andamento, e a equipe já colocou na mira outras 250 operações.

Editoria de Arte/Folhapress
A maior parte das transações monitoradas pelos auditores se refere a fusões e aquisições ou reestruturações dentro do mesmo grupo econômico. Martins, da Receita, estima que, em 60% dos casos, tenha havido "criação fictícia" de ágio, usado indevidamente para abater imposto (veja quadro nesta página).
Gerdau, Vivo, TIM, Oi, Natura e BM&FBovespa estão entre as empresas autuadas que passaram por reestruturações desse tipo. Só a autuação da Gerdau chega, em valores de hoje, a R$ 1 bilhão.
Em mais da metade dos casos, o fisco aplicou multa de 150% sobre o imposto supostamente devido por considerar que houve má-fé no planejamento tributário. A multa padrão é de 75%.
A Receita se prepara para pedir ao Ministério Público Federal que represente essas empresas criminalmente.
Os escritórios de advocacia que participaram dessas operações também serão processados, segundo Martins.
"Não existe respaldo econômico nessas operações. Elas foram criadas só para a obtenção do benefício fiscal."
Martins diz que as representações criminais ocorrerão após o julgamento definitivo das autuações. Mas esse procedimento também é alvo de controvérsia.
"A prova de que não há fraude ou má-fé é que existem decisões no Carf favoráveis aos contribuintes", diz o advogado Igor Mauler, da Comissão de Direito Tributário da OAB Nacional.
Todas as multas aplicadas foram contestadas no Carf, no qual as empresas tentam reverter as autuações. Algumas, como o Santander, conseguiram reverter a multa.
Já o caso da Gerdau está na última instância administrativa. Consultadas, as empresas não quiseram se manifestar devido ao sigilo fiscal.

fonte: FOLHA DE SÃO PAULO

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Pai que desconhece filha não comete abandono afetivo

Uma mulher teve rejeitado o pedido de indenização por danos morais por abandono afetivo paterno. A decisão foi tomada pela 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que também negou o pedido de condenação do homem por litigância de má-fé. Segundo a filha, ele retardou os trâmites processuais e insistiu em negar a paternidade.
Relator do caso, o desembargador Raulino Jacó Brüning lembrou que o acusado não sabia que a mulher era sua filha até a sentença, com o reconhecimento da paternidade vindo 30 anos após o nascimento dela. Por conta disso, ele não pode ser culpado por abandono afetivo, que ocorre quando há omissão em aspectos como educação, afeto, atenção e cuidado.
Segundo o desembargador Brüning, houve omissão, nexo casual e dano mas, sem a culpa, não há como punir o homem.  Além disso, como não existia qualquer vínculo afetivo, não ocorreu o rompimento do mesmo.
No que diz respeito à litigância de má-fé, os desembargadores acompanharam o relator. Ele apontou que quando o réu contestou o pedido de indenização, a paternidade não fora reconhecida e, assim, o direito da filha não estava reconhecido.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Lavagem de dinheiro e corrupção passiva na AP 470(MENSALÃO)


Na sequencia da coluna anterior, continuamos a reflexão sobre a decisão — ainda não transitada em julgado — do STF nos autos da Ação Penal 470. Uma das questões mais polêmicas foi aquela referente ao concurso formal entre o crime de corrupção passiva (Código Penal, artigo 317[1]) e o delito de lavagem de dinheiro.
Segundo a denúncia, alguns réus funcionários públicos (no sentido penal do termo) solicitaram ou receberam, em razão de sua função, vantagem indevida (CP, artigo 317). O pagamento de tais valores teria sido feito em dinheiro em espécie, e entregue a terceiras pessoas (assessores ou parentes próximos) que repassaram o capital a seus destinatários. Estes fatos foram caracterizados pela maioria dos ministros como corrupção passiva (CP, artigo 317) e lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98, artigo 1º), em concurso.
A questão que aqui exige reflexão: é possível reconhecer o concurso de crimes e identificar ao mesmo tempo um crime de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro? Vejamos.
Em primeiro lugar, enfrentemos a questão em tese. O crime de corrupção passiva tem como núcleos típicos alternativos os atos de solicitar ou receber a vantagem indevida, sendo que apenas na segunda modalidade pode existir concurso com a lavagem de dinheiro, uma vez que na primeira não existe o produto do crime, ou seja, não há dinheiro a ser lavado.
No modo receber, o delito se consuma com a disponibilização dos valores ao agente, ou a terceiro (pessoa física ou jurídica) por ele indicado. Ou seja, apenas a partir deste momento existe produto de corrupção consumada que pode ser oculto ou dissimulado. Antes disso, os valores — lícitos ou ilícitos — não são fruto de corrupção, mas apenas bens destinados à prática do ato, e, portanto, não são objeto da lavagem de dinheiro.
Com isso, é possível a ocorrência de concurso entre a corrupção passiva e a lavagem de dinheiro, desde que caracterizado, além (ou junto) do recebimento, um ato de ocultação com aptidão para a reciclagem completa posterior.
O STF já enfrentou a discussão sobre a possibilidade do concurso entre os crimes em questão, nos autos do Inquérito 2.471[2], concluindo pela viabilidade da conjugação dos delitos. Por isso, a tese não é inédita. Novos são seus contornos no caso da Ação Penal 470.
Ali, parte dos ministros do STF enxergou tal elemento no fato do dinheiro da suposta corrupção ser recebido por intermediários, por funcionários ou parentes dos agentes corrompidos[3]. O uso de interpostas pessoas caracterizaria a ocultação necessária à tipicidade da lavagem de dinheiro.Tivesse o corrompido recebido diretamente o dinheiro, não haveria o crime de lavagem de dinheiro,mas apenas corrupção passiva.
A primeira crítica a essa construção partiu dos ministros da Corte que divergiram de tal entendimento, a começar pelo ministro revisor Ricardo Lewandowski:
“Observo, por oportuno, que o recebimento de numerário por interposta pessoa não caracteriza necessariamente o crime de lavagem de dinheiro. É que tal artifício, com efeito, é largamente utilizado para apercepção da propina. Jamais, quiçá, a vantagem indevida é recebida diretamente, à luz do dia” (fls.3739 do ac.)[4].
Em sentido semelhante, a ministra Rosa Weber caracterizou o recebimento do dinheiro como atoconsumativo da corrupção passiva e de exaurimento da corrupção ativa, apontando que o uso deintermediários seria uma modalidade de consumação e não um crime adicional.
“Nessa linha, a utilização de um terceiro para receber a propina – com vista a ocultar ou dissimular o ato, seu objetivo e real beneficiário – integra a própria fase consumativa do crime de corrupção passiva, núcleo receber, e qualifica-se como exaurimento do crime de corrupção ativa. Por isso, a meu juízo, esse ocultar e esse dissimular não dizem necessariamente com o delito de lavagem de dinheiro, embora, ao surgirem como um iceberg, como a ponta de esquema de proporções mais amplas, propiciem maior reflexão sobre a matéria.” (voto Min. Rosa Weber, fls.1086 do ac.)[5].
Em linha similar — mas não de todo idêntica — o ministro Cezar Peluso entendeu que o recebimentoseria o exaurimento do crime de corrupção passiva, concluindo também que sua realização por meio de interposta pessoa não constitui a lavagem de dinheiro:
“Ora, sob esse pressuposto inafastável, a utilização de terceira pessoa para o saque de dinheiro ilícito não passa, a meu ver, do exaurimento do próprio delito originário, pois se destina a viabilizar-lhe o recebimento” (fls.2173 do acórdão).[6]
O raciocínio dos ministros vencidos parece mais adequado. Receber dinheiro sujo por intermediários nem sempre caracteriza a ocultação necessária à lavagem de dinheiro. Obter o numerário por meio da esposa ou de assessores formais, próximos ao corruptor, que o retiraram em bancos, durante o dia, assinando recibos[7], não corresponde à ocultação prevista no tipo penal da lavagem de dinheiro. Por mais que o crime não exija sofisticação na dissimulação — como já aventado — é necessário constatar o escamoteamento que afete (ou coloque em risco) a administração da Justiça e o rastreamento da origem e do destino dos valores. E o recebimento de dinheiro através de pessoas com as quais se tem evidente, clara e direta relação não é capaz de obstaculizar qualquer atividade da Justiça.
Mas, mesmo que se considere o recebimento de valores por intermediários próximos como ato deocultação, é importante destacar que o mero ato de esconder o capital não importa em lavagem de dinheiro. Apenas o encobrimento apto a conferir aparência de licitude ao capital revela o tipo penal. Lavar dinheiro é retirar suas manchas, sua ligação com o crime precedente, e nem sempre a simples ocultação é capaz disso.
Em suma, existem ocultações e ocultações. Fosse qualquer encobrimento apto a ensejar a lavagem de dinheiro, poucos crimes patrimoniais escapariam a tal caracterização. Imagine-se um roubo, furto ou estelionato. Evidente que o agente tentará esconder o produto do crime de diversas formas. Esta ocultação somente caracteriza lavagem de dinheiro se for o passo inicial para uma posterior reinserção dos valores na economia formal, com aparência de licitude.
Como já observamos: o ato de enterrar dinheiro ou escondê-lo em fundos falsos, do ponto de vista objetivo, perfaz a ocultação, uma vez que o produto da infração foi escamoteado. Mas essa conduta somente caracterizará lavagem de dinheiro se acompanhada de elementos objetivos que revelem a sua aptidão para reintegrá-lo posteriormente à econômica com aparência de licitude. Se alguém rouba um banco e enterra o dinheiro para depois usá-lo para aquisição de bens de consumo pessoal em seu nome, como carros ou imóveis, oculta o dinheiro do ponto de vista objetivo, mas não hátipicidade de lavagem porque ausente o contexto de reciclagem do capital. Trata-se de mero exaurimento do crime antecedente. O agente não busca conferir aparência licita aos bens obtidos pelo crime, mas apenas aguardar o melhor momento para usufruí-los.[8]
Por outro lado, se o agente enterra o dinheiro e envia uma missiva a doleiro relatando a posse do capital e solicitando providências para uma transação por dólar cabo com a disponibilização da mesma soma em moeda estrangeira no exterior, haverá lavagem de dinheiro consumada, pois além da ocultação, existe o contexto de reciclagem, a aptidão da conduta para apagar os rastros do capital ilícito e desvinculá-lo de seu passado obscuro[9].
Assim, não é a sofisticação da ocultação que revela a lavagem de dinheiro, mas a indicação de elementos objetivos e subjetivos que demonstrem a relação desta com um ato posterior dereciclagem, de inserção do produto do crime na economia, sob um manto de legalidade. Note-se: ainserção do capital na economia não é necessária à consumação da lavagem, uma vez que o tipo penal menciona apenas a ocultação como modalidade delitiva completa, mas a descrição da aptidão da conduta para uma futura reciclagem e a intenção específica do agente nesse sentido são indispensáveis para a materialidade do crime.
Diante disso, parecem corretas as posições dissidentes dos integrantes do STF, quando rechaçam o mero uso de intermediários próximos aos corruptores para recebimento de valores de corrupçãocomo elemento material da lavagem de dinheiro. Tal mecanismo não confere — nem tem aptidão para conferir — aparência licita aos valores. O numerário sacado continua sem origem justificada. Não está mascarado, uma vez que o recebimento de produto ilícito por terceiros não tem aptidão para limpar o bem, nem para simular uma origem legítima.
No entanto, não foi apenas este o fundamento da condenação dos supostos corrompidos por lavagem de dinheiro. O ministro relator frisou, em seu voto, que o fato do dinheiro ter sido entregue por terceiros intermediários não foi o elemento fundamente da condenação por reciclagem de capitais. A imputação por este último delito se deu porque os valores foram disponibilizados — aos terceiros ou aos próprios corrompidos — através de um sistema de gestão fraudulenta de instituição financeira[10]. Segundo o voto, o dinheiro proveniente de peculato e de empréstimos simulados era depositado na conta corrente de uma empresa de publicidade. Esta, por sua vez, autorizava saques em espécie, indicando ao banco que o dinheiro seria usado pela própria empresa, para pagamento de fornecedores. No entanto, quem retirava o dinheiro não eram prestadores de serviços da empresa, mas representantes dos supostos corrompidos, ou os próprios. Ou seja, formalmente a empresa retirava altas somas em espécie para pagamento de fornecedores, quando, na verdade, destinava tais valores para corrupção.
Com tal sistema, escamoteava-se a origem dos recursos (peculato e de gestão fraudulenta) e seu destino: a corrupção de servidores públicos. Esse seria o processo de mascaramento, e não o uso deintermediários para a entrega dos valores aos destinatários finais. Assim, na ótica do ministro relator, mesmo que o sacador do dinheiro fosse o próprio corrompido, ainda existiria lavagem de dinheiro, porque seu elemento central foi o escamoteamento via instituição financeira, independente que quem recebesse os valores:
“Com esses mecanismos (sistemática do banco e da empresa de publicidade de ocultar o verdadeiro sacador do dinheiro), que, por sua eficácia, permitiu que os fatos permanecessem encobertos por quase dois anos, até mesmo se o próprio J.P.C. tivesse se dirigido pessoalmente à agência do Banco R. em Brasília, teria praticado o crime de lavagem de dinheiro” (voto min. Joaquim Barbosa, fls.666 do ac., sem grifos no original)
E, mais adiante:
“Não há, no caso, mero exaurimento do crime de corrupção, pois o meio empregado para receber vantagem indevida configurou, no caso, o crime autônomo de lavagem de dinheiro, que atingiu bem jurídico distinto” (voto Min. Joaquim Barbosa, fls.668 do ac.)[11]
A nosso ver, tal construção acaba por inverter a lógica do tipo penal. A lavagem de dinheiro se caracteriza pelo uso de sistemas para encobrir o capital produto de infração, ou seja, ela aconteceapós a prática delitiva antecedente. Por isso, qualquer mecanismo de dissimulação que anteceda o delito de corrupção não pode ser imputado a titulo de lavagem de dinheiro, ao menos em relação ao corrompido.
O voto da ministra Rosa Weber, ao tratar do tema, trouxe inúmeros julgados da justiça norte americana “no sentido de que a lavagem de dinheiro somente se aplica para atos posteriores à consumação do crime antecedente”[12]
Na mesma linha, o ministro Cezar Peluso apontou que:
“Em síntese, creio não se deva confundir o ato de ocultar e dissimular a natureza ilícita dos recursos, presente no tipo penal de lavagem de dinheiro, e que a doutrina especializada descreve como estrategemas comumente adotados para que o produto do crime antecedente – seja progressivamente reintroduzido na economia, agora com aparência de licitude, com os atos tendentes a evitar-lhe o confisco ainda durante o iter criminis do delito antecedente, em outras palavras, para garantir a própria obtenção do resultado do delito.” (fls.2280 do acórdão, sem grifos)
Ainda que se discuta se o recebimento da vantagem é o momento da consumação da corrupção, ou mero exaurimento de solicitação anterior, fato é que o produto da corrupção só existe para ocorruptor a partir do momento que este passa a dele dispor, seja diretamente, seja por intermediários. Antes disso, qualquer procedimento de tratamento do capital, modificação de seus aspectos, ou translado, estão fora de seu domínio. Ele é estranho ao curso do dinheiro antes deste chegar às suas mãos, ou nas de alguém que o represente formal ou informalmente. O recebimento dos valores será corrupção passiva, mas o processo que o antecede não se adequa ao tipo de lavagem de dinheiro — ao menos na perspectiva de seu destinatário. Do contrário, para utilizar expressão do ministro Marco Aurélio, nos autos em questão, estar-se-ia “barateando em demasia o fato típico da lavagem de dinheiro[13].
No entanto, em que pesem tais considerações — e os votos em contrário de alguns ministros — prevaleceu no acórdão em estudo o reconhecimento do concurso de crimes entre lavagem de dinheiro e corrupção passiva, nos casos em que o dinheiro foi recebido por intermediários ou nos casos em que se constatou uma engenharia financeira anterior para ocultar a origem dos bens.

[1] Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
[2] Inq.2471, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j.29.9.2011, Plenário)
[3] Por exemplo, o Min. Revisor, às fls.1008 do acórdão, do Min. Luiz Fux, às fls.1539 do acórdão (ainda que não tenha sido esse o único fundamento da condenação por lavagem), do Min. Dias Toffoli, às fls.1745 do acórdão, da Min. Carmen Lucia, fls.1805 e 1875 do acórdão, do Min. Ayres Britto, às fls.2478 do acórdão
[4] Embora o Ministro faça distinções sobre a qualidade do intermediária e faça decorrer dela a existência ou não de lavagem de dinheiro. Assim, nos casos de recebimento de valores pormensageiros, garçons, office boy
[5] A Ministra ainda repete o argumento às fls.1262 do acórdão.
[6] Ainda na linha do exaurimento do crime de corrupção, o Ministro Marco Aurélio, às fls.3719 do acórdão.
[7] que não remetidos ao COAF, mas ficaram em poder do banco e consistiram em prova material do caminho do dinheiro até os destinatários finais
[8] O mero “proveito econômico do crime antecedente” não caracteriza lavagem de dinheiro (De Carli,Dos crimes, p. 195), (Pitombo, Lavagem de dinheiro, p. 109), De Carli, Dos crimes, p. 195.
[9] BOTTINI, Pierpaolo Cruz, e BADARÓ, Gistavo Henrique, Lavagem de dinheiro. São Paulo: RT, 2012, p.67.
[10] Fls.777 do Ac.
[11] Em sentido similar, o Min. Luiz Fux, às fls.1540 do acórdão, e o Min. Gilmar Mendes, às fld.2327 do acórdão.
[12] Fls.1264 do acórdão, sem grifos. Vale destacar, no entanto, que ao tratar do núcleo politico do esquema denunciado, a mesma Ministra admite a lavagem de dinheiro na entrega de numerário a parlamentares em troca de apoio politico, indicando que “seu propósito especifico, sem duvida, era receber o dinheiro, e não lavá-lo, mas, concordando em recebe-lo mediante estrategemas de ocultação e dissimulação e, ainda, contribuindo com estes mediante a utilização de pessoas interpostas e a falta de contabilização, praticaram dolosamente o crime de lavagem de dinheiro”(fls.1302 do acórdão). Ou seja, aponta – nestes casos – a existência de lavagem fundada em atosanteriores ao recebimento do dinheiro.
[13] Citando, por sua vez, expressão de Francisco Rezek (fls.3723 do acórdão)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

TST reconhece gravação como prova para comprovar ganho

A gravação de diálogo por parte de um dos interlocutores, mesmo sem o conhecimento dos demais, é legal e não se equipara a interceptação telefônica. Com esse argumento, a gravação feita por um piloto para comprovar o pagamento de salário "por fora" de R$ 1,8 mil foi considerada lícita pela 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, ao contrário do que alegava a empregadora, que pretendia se eximir de condenação ao pagamento dos reflexos dessa parcela às verbas devidas ao trabalhador. A Turma decidiu por unanimidade não conhecer do recurso da empresa, mantendo decisão condenatória do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG).
Para comprovar as alegações de que recebia um salário maior do que o declarado no contracheque, o piloto decidiu gravar uma conversa com um dos engenheiros aeronáuticos da empresa. Feita a gravação, apresentou-a como prova na reclamação trabalhista movida contra empresa. Além da gravação, indicou ainda uma testemunha para confirmar o alegado.
A 36ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte decidiu pelo deferimento das verbas, após analisar que o depoimento da testemunha indicada pelo piloto confirmava o teor da gravação. O TRT-3 manteve a condenação, por entender que a gravação, mesmo que tivesse sido feita sem o conhecimento do preposto, não seria ilegal. O tribunal observou que, nas partes da gravação que interessavam ao caso, o piloto atuava como interlocutor, razão pela qual não se poderia equipará-la a interceptação telefônica.
O recurso de revista da empresa ao TST teve a relatoria do ministro Mauricio Godinho Delgado. Ao votar pelo não conhecimento, ele observou que a empresa não apontou jurisprudência específica em sentido contrário à conclusão do TRT-3, nem interpretação divergente de normas regulamentadoras ou violação direta de dispositivo de lei federal ou da Constituição Federal, conforme determina o artigo 896 da CLT.
Acrescentou ainda que, no seu entendimento, não há ilicitude na gravação unilateral de um diálogo entre pessoas, mesmo pela via telefônica ou congênere, desde que esta tenha sido realizada por um dos interlocutores — ainda que sem o conhecimento da outra parte.
O relator considerou que tal meio de prova não se confunde com a interceptação telefônica nem fere o sigilo telefônico, ambos regulados no artigo 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal. Diante disso, considerou legal a utilização em juízo, pelo piloto, da gravação que comprovou o salário ganho extraoficialmente. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
RR-20100-06.2007.5.03.0136

domingo, 21 de julho de 2013

Direitos em separação se estendem à união estável

Quando um casal desenvolve uma relação afetiva contínua e duradoura, conhecida publicamente e estabelece a vontade de constituir uma família, essa relação pode ser reconhecida como união estável, de acordo com o Código Civil de 2002. Esse instituto também é legitimado pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226, parágrafo 3º.
Por ser uma união que em muito se assemelha ao casamento, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem aplicado às uniões estáveis, por extensão, alguns direitos previstos para o vínculo conjugal do casamento.
Na união estável, o regime de bens a ser seguido pelo casal, assim como no casamento, vai dispor sobre a comunicação do patrimônio dos companheiros durante a relação e também ao término dela, na hipótese de separação ou morte de um dos parceiros. Dessa forma, há reflexos na partilha e na sucessão dos bens, ou seja, na transmissão da herança.
O artigo 1.725 do Código Civil estabelece que o regime a ser aplicado às relações patrimoniais do casal em união estável é o de comunhão parcial dos bens, salvo contrato escrito entre companheiros. Mas o que acontece no caso de um casal que adquire união estável quando um dos companheiros já possui idade superior a setenta anos?
É justamente em virtude desse dispositivo que vários recursos chegam ao STJ, para que os ministros estabeleçam teses, divulguem o pensamento e a jurisprudência da Corte sobre o tema da separação obrigatória de bens e se esse instituto pode ou não ser estendido à união estável.
O Direito de Família brasileiro estabeleceu as seguintes possibilidades de regime de comunicação dos bens: comunhão parcial, comunhão universal, separação obrigatória, separação voluntária e ainda participação final nos aquestos (bens adquiridos na vigência do casamento).
ObrigatoriedadeA obrigatoriedade da separação de bens foi tratada pelo Código Civil de 1916 em seu artigo 258, parágrafo único, inciso II. No novo código, o assunto é tratado no artigo 1.641. Para o regramento, o regime da separação de bens é obrigatório no casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; da pessoa maior de 70 anos (redação dada pela Lei 12.344 de dezembro de 2010) e de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
No Recurso Especial 646.259, o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, entendeu que, para a união estável, à semelhança do que ocorre com o casamento, é obrigatório o regime de separação de bens de companheiro com idade superior a 60 anos. O recurso foi julgado em 2010, meses antes da alteração da redação do dispositivo que aumentou para setenta 70 o limite de idade dos cônjuges para ser estabelecido o regime de separação obrigatória.
Com a morte do companheiro, que iniciou a união estável quando já contava com 64 anos, sua companheira pediu, em juízo, a meação dos bens. O juízo de primeiro grau afirmou que o regime aplicável no caso é o da separação obrigatória de bens e concedeu a ela apenas a partilha dos bens adquiridos durante a união estável, mediante comprovação do esforço comum. A companheira interpôs, então, recurso no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O TJ-RS reformou a decisão do primeiro grau e deu provimento ao recurso. Afirmou que não se aplica à união estável o regime da separação obrigatória de bens previsto no artigo 258, parágrafo único, inciso II, do código de 1916. “Descabe a aplicação analógica de normas restritivas de direitos ou excepcionantes. E, ainda que se entendesse aplicável ao caso o regime da separação legal de bens, forçosa seria a aplicação da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (STF), que igualmente contempla a presunção do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado na constância da união”.
O espólio do companheiro apresentou recurso especial no STJ alegando ofensa ao artigo mencionado do código de 1916 e argumentou que se aplicaria às uniões estáveis o regime obrigatório de separação de bens, quando um dos conviventes fosse sexagenário, como no caso.
Instituto menorPara o ministro Luis Felipe Salomão, a partir da leitura conjunta das normas aplicáveis ao caso, especialmente do artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição, do Código Civil de 1916 e das leis 8.971/1994 e 9.278/1996, “não parece razoável imaginar que, a pretexto de se regular a união entre pessoas não casadas, o arcabouço legislativo acabou por estabelecer mais direitos aos conviventes em união estável (instituto menor) que aos cônjuges”.
Salomão, que compõe a 4a Turma do STJ, mencionou que o próprio STF entendeu que a Constituição “coloca, em plano inferior ao do casamento, a chamada união estável, tanto que deve a lei facilitar a conversão desta naquele”. A tese foi expressa no Mandado de Segurança 21.449, julgado em 1995, no Tribunal Pleno do STF, sob a relatoria do ministro Octavio Gallotti.
O ministro explicou que, por força do dispositivo do código de 1916, equivalente em parte ao artigo 1.641 do código de 2002, “se ao casamento de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o regime de separação obrigatória de bens, também o deve ser às uniões estáveis que reúnam as mesmas características, sob pena de inversão da hierarquia constitucionalmente sufragada”.
Do contrário, como cita o civilista Caio Mário da Silva Pereira no volume 5 de sua coleção intitulada Instituições do Direito Civil, se aceitassem a possibilidade de os companheiros optarem pelo regime de bens quando o homem já atingiu a idade sexagenária, estariam “mais uma vez prestigiando a união estável em detrimento do casamento, o que não parece ser o objetivo do legislador constitucional, ao incentivar a conversão da união estável em casamento”. Para Caio Mario, “deve-se aplicar aos companheiros maiores de 60 anos as mesmas limitações previstas para o casamento para os maiores desta idade: deve prevalecer o regime da separação legal de bens”.
DiscrepânciaO entendimento dos ministros do STJ tem o intuito de evitar interpretações discrepantes da legislação que, em sentido contrário ao adotado pela corte, estimularia a união estável entre um casal formado, por exemplo, por um homem com idade acima de 70 anos e uma jovem de 25, para burlarem o regime da separação obrigatória previsto para o casamento na mesma situação.
Ao julgar o Recurso Especial 1.090.722, o ministro Massami Uyeda, relator do recurso, trouxe à tona a possibilidade de tal discrepância. “A não extensão do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade do de cujus (falecido), constante do artigo 1.641, II, do Código Civil, à união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o que, certamente, discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação da união estável em casamento, e não o contrário”, analisou.
O recurso especial foi interposto pelo irmão do morto, que pediu a remoção da companheira como inventariante, por ter sonegado informações sobre a existência de outros herdeiros: ele mesmo e seus filhos, sobrinhos do falecido, na sucessão. A união estável foi iniciada após os 60 anos de idade do companheiro, por isso o irmão do homem que morreu alegou ser impossível a participação da companheira na sucessão dos bens adquiridos onerosamente anteriores ao início da união estável.
No STJ a meação foi excluída. A mulher participou da sucessão do companheiro falecido em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância da convivência. Período que, para o ministro Uyeda, não se inicia com a declaração judicial que reconhece a união estável, mas, sim, com a efetiva convivência. Ela concorreu ainda com os outros parentes sucessíveis, conforme o inciso III do artigo 1.790 do Código Civil vigente.
Uyeda observou que “se para o casamento, que é o modo tradicional, solene, formal e jurídico de constituir uma família, há a limitação legal, esta consistente na imposição do regime da separação de bens para o indivíduo sexagenário que pretende contrair núpcias, com muito mais razão tal regramento deve ser estendido à união estável, que consubstancia-se em forma de constituição de família legal e constitucionalmente protegida, mas que carece das formalidades legais e do imediato reconhecimento da família pela sociedade”.
Interpretação da súmulaDe acordo com Uyeda, é preciso ressaltar que a aplicação do regime de separação obrigatória de bens precisa ser flexibilizado com o disposto na súmula 377/STF, “pois os bens adquiridos na constância, no caso, da união estável, devem comunicar-se, independente da prova de que tais bens são provenientes do esforço comum, já que a solidariedade, inerente à vida comum do casal, por si só, é fator contributivo para a aquisição dos frutos na constância de tal convivência”.
A súmula diz que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. A interpretação aplicada por Uyeda foi firmada anteriormente na 3a Turma pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, no julgamento do REsp 736.627.
Para Menezes Direito os aquestos se comunicam não importando que hajam sido ou não adquiridos com esforço comum. “Não se exige a prova do esforço comum para partilhar o patrimônio adquirido na constância da união”.
De acordo com o ministro, a jurisprudência evoluiu no sentido de que “o que vale é a vida em comum, não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas a participação direta e indireta representada pela solidariedade que deve unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus membros”.
Esforço presumidoPara a ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 1.171.820, ocasião em que sua posição venceu a do relator do recurso, ministro Sidnei Beneti, a relatora para o acórdão considerou presumido o esforço comum para a aquisição do patrimônio do casal.
O recurso tratava de reconhecimento e dissolução de união estável, cumulada com partilha de bens e pedido de pensão alimentícia pela companheira. Ela alegava ter vivido em união estável por mais de uma década com o companheiro. Este, por sua vez, negou a união estável, afirmou tratar-se apenas de namoro e garantiu que a companheira não contribuiu para a constituição do patrimônio a ser partilhado, composto apenas por bens imóveis e rendimentos dos aluguéis deles.
O tribunal de origem já havia reconhecido a união estável do casal pelo período de 12 anos, sendo que um dos companheiros era sexagenário no início do vínculo. O STJ determinou que os autos retornassem à origem, para que se procedesse à partilha dos bens comuns do casal, declarando a presunção do esforço comum para a sua aquisição.
Como o esforço comum é presumido, a ministra Nancy Andrighi declarou não haver espaço para as afirmações do companheiro alegando que a companheira não teria contribuído para a constituição do patrimônio a ser partilhado.
Para a ministra, “do ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais, não há diferença no que se refere à partilha dos bens com base no regime da comunhão parcial ou no da separação legal contemporizado pela súmula 377 do STF”.
Alcance da cautelaA dúvida que pode surgir diz respeito ao que efetivamente a cautela da separação obrigatória, contemporizada pela súmula, alcança. Para o ministro Menezes Direito, a súmula “admitiu, mesmo nos casos de separação legal, que fossem os aquestos partilhados”.
De acordo com ele, a lei não regula os aquestos, ou seja os bens comuns obtidos na constância da união estável. “O princípio foi o da existência de verdadeira comunhão de interesses na constituição de um patrimônio comum”, afirmou. E confirmou que a lei não dispôs que a separação alcançasse os bens adquiridos durante a convivência.
Para Menezes Direito, “a cautela imposta (separação obrigatória de bens) tem por objetivo proteger o patrimônio anterior, não abrangendo, portanto, aquele obtido a partir da união” (REsp 736.627). Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Justiça precisa de mecanismos de participação social

Em um momento em que milhares de pessoas tomaram as ruas para manifestar indignação, e reivindicar reforma das instituições e a realização de direitos, é imprescindível e oportuno identificar e situar o debate acerca do sistema de justiça nesta conjuntura.
A agenda política de justiça tem aparecido no atual contexto de grandes mobilizações, mas não necessariamente por estar aberta às demandas que vêm das ruas. Historicamente o sistema de justiça exerce diversas funções políticas, dentre elas as de i) controle social, através da criminalização da luta por direitos; ii) de bloqueio, mas também de alguns avanços nas políticas de direitos humanos; e iii) legitimação do sistema político.
Nesse sentido, é fundamental ter em vista que o Poder Judiciário compõe, resguardadas a sua autonomia e independência, o quadro das instituições do sistema político brasileiro, e não pode ficar à distância, deslocado ou resguardado das transformações que o Brasil demanda. Não se pode discutir reforma do sistema político, nem reivindicar mudanças estruturais em nossa sociedade, sem retomar o debate acerca da reforma do sistema de justiça, agora fundada sobre as bases de uma cultura de direitos humanos.
A justiça brasileira precisa dialogar com o povo, precisa se sensibilizar com o momento de demandas de direitos colocadas nas ruas, precisa incorporar mecanismos de participação social e de transparência, e se comprometer com o combate às violações de direitos humanos.
Desse modo, a Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh vem atuando junto ao sistema de justiça, ao legislativo e executivo, para a incorporação de mecanismos voltados para a sua democratização, como a implementação de ouvidorias externas e de orçamentos participativos, a abertura institucional a mais audiências públicas e fóruns com a participação da sociedade civil sobre temáticas de direitos humanos, além da transparência como diretriz de gestão.
Avalia-se que tais transformações democráticas na justiça estão ao alcance das organizações e movimentos sociais, e são de responsabilidade imediata de todas as instituições que compõem o sistema de justiça, sejam do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias ou Advocacia. Neste sentido, identificamos no incipiente debate acerca da reforma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman, elaborada pela ditadura civil-militar, uma oportunidade para a discussão, implementação e difusão destes mecanismos e de uma cultura democrática voltada ao compromisso com a efetivação dos direitos humanos em nosso país.
É tempo de repensarmos o modelo de ingresso e a captura oligárquica nas carreiras jurídicas, de discutirmos os desafios de como incorporar a pluralidade de nossa sociedade no universo jurídico, de rompermos com a elitização desse espaço. É momento, portanto, de reforma política da justiça e de construirmos um sistema de justiça que esteja a serviço e compromissado com a efetivação dos direitos humanos no Brasil.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

PREVENÇÃO CRIMINAL DA ATIVIDADE EMPRESARIAL

Criminal compliance previne responsabilidade penal


O empresariado sente-se cada vez mais acuado com a quantidade de condutas que vêm sendo criminalizadas, dificultando cada vez mais o livre exercício profissional. Prova disso encontra-se nos diversos dispositivos que regulam a ordem econômica, a ordem tributária e, principalmente, nas diversas obrigações previstas em lei que visam, em última análise, coibir a lavagem de dinheiro.
Para piorar, além de criar crimes para quase tudo, o legislador também se utiliza de técnicas e medidas de política criminal que, sob o manto da modernidade, transige com princípios elementares do direito. Como se isso não fosse suficiente, também no campo processual, o legislador abre mão da prova da materialidade do crime, bem como da necessidade de se chegar ao agente que efetivamente deu causa ao ilícito.
Exemplo de medidas de política criminal moderna encontra-se na possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica, na responsabilidade penal objetiva, quando o empresário vem a ser punido pelo que é, e não pelo fato que cometeu, na posição de garantidor de um dever juridicamente relevante que, ao que parece, justifica a punição de um diretor por ato praticado pelo subordinado.
Por tudo isso, correto o dito popular: “Antes prevenir do que remediar”. De fato, com o recurso cada vez mais usual da pena como medida de política criminal, o Estado assume viés repressor, levando a sociedade a buscar medidas para se resguardar do ataque que, muitas vezes, é desproporcional e injusto. Nesse quadro, a prevenção assume importante função. Do lado de lá, a justificativa recai na globalização e no fenômeno da sociedade de risco. A pergunta que paira é: Até que ponto é permitido fazer uma releitura de certos conceitos estruturais do direito penal com o objetivo de frear a expansão dessa nova criminalidade?
Quando se elege o bem jurídico econômico como objeto de tutela estatal seria mais adequado que a proteção se efetuasse por meio de medidas de cunho administrativo. Caso essa forma de tutela se mostrasse falha ou insuficiente o direito penal interviria como medida extrema. Não é a opção do legislador pátrio que, cada vez com mais intensidade, tipifica um número cada vez maior de condutas, a irregularidade que talvez pudesse ser coibida no campo administrativo fica acobertada pelo severo manto do ilícito penal.
Para agravar esse cenário, opta o legislador por criminalizar condutas ainda em sua fase embrionária, com demasiado destaque ao caráter preventivo do direito penal. De outro lado, prescinde-se da efetiva ameaça do bem jurídico tutelado. A lei perde sua eficácia e fica desvirtuada de sua função. Quem ganha com isso?
Com estas medidas o que se tem é o que chamamos de efeito rebote, isto é, ao invés de solucionar ou minimizar os problemas existentes, criam-se outros que poderão se tornar intransponíveis, como o aumento da criminalidade organizada e o desrespeito às leis e a ordem pública. As consequências disso são alarmantes e o Direito Penal não pode ter a tarefa de resolvê-las. Insistir é acentuar os problemas para um futuro próximo.
É necessária a mudança de paradigma da cultura empresarial brasileira vez que atua, basicamente, de maneira reativa e não preventiva, potencializando danos muitas vezes irreparáveis.
Como uma proposta nova de minimização dos riscos da sociedade moderna e contemporânea, o instituto do Criminal Compliance pode e deve ser utilizado, tanto como uma ferramenta de controle, proteção e prevenção de possíveis práticas criminosas nas empresas, quanto uma valiosa ferramenta de transferência de responsabilidade penal nos crimes econômicos e nos meios eletrônicos, evitando-se, assim, a responsabilidade penal objetiva e a responsabilidade penal da pessoa jurídica, com a consequente mantença da ordem jurídica e social.
No Brasil, a Lei 9.613/1998, com a nova redação dada pela Lei 12.683/2012, Lei dos Crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores, criou o Coaf — Conselho de Controle de Atividades Financeiras, com a finalidade de identificar, disciplinar e aplicar penas administrativas às atividades ilícitas praticadas, nos termos desta Lei.
Trouxe a lei, como verdadeiros deveres de compliance, embora sem se referir especificamente a essa denominação, as obrigações legais que devem ser cumpridas por determinadas pessoas físicas ou jurídicas. Incluiu o legislador, ainda, a previsão da responsabilidade dos administradores das pessoas jurídicas, na hipótese de descumprimento das obrigações legalmente descritas. Com isso, o que se tem é, propriamente, a transferência, ao setor privado, da responsabilidade de prevenir a lavagem de dinheiro, com claro desvirtuamento do papel do setor privado, assumindo uma função que, por decorrência lógica, compete ao setor público.
O instituto do compliance pode ser dividido em dois campos de atuação: um, de ordem subjetiva, que compreende regulamentos internos, como a implementação de boas práticas dentro e fora da empresa e a aplicação de mecanismos em conformidade com a legislação pertinente à sua área de atuação, visando prevenir ou minimizar riscos, práticas ilícitas e a melhoria de seu relacionamento com clientes e fornecedores. O outro campo de atuação é de ordem objetiva, obrigado por lei, como é o caso da Lei de Lavagem de Dinheiro.
No âmbito subjetivo há uma imposição ético-legal implícita, podendo optar a empresa em instituir, ou não, o instituto do compliance. Já na faceta objetiva, o compliance é exigência legislativa que alcança tanto as pessoas quanto as suas obrigações, bem como as instruções para o seu cumprimento. Vale dizer que, em ambos os casos, tem-se como premissa o caráter preventivo de ilícitos.
Embora as normas legais referidas englobem todo o ordenamento jurídico vigente, para nós o que importa é o Direito Penal, isto é, a responsabilidade penal que pode ser prevenida pelo instituto docompliance, chamado de Criminal Compliance.
Nossa ordem jurídica tem se desenvolvido de maneira tão complexa que se torna muito difícil ser conhecida pelo cidadão comum sem a ajuda de um profissional do Direito, especialista em uma determinada área de atuação. Os sistemas normativos regulados são de difícil compreensão.
Em consequência é comum o empresário da sociedade global do risco adotar medidas e tomar decisões quase que às cegas, e que, entretanto, não o desonera de responsabilidade na hipótese de ser possível evitar o dano.
Como necessidade pungente de preservação da corporação, diante do expansionismo desenfreado do Direito Penal, o instituto do Criminal Compliance surge como um mecanismo de controle interno, de prevenção de práticas de condutas ilícitas criminais, que possam colocar em risco a liberdade de seus dirigentes ou a própria empresa.
O objetivo do Criminal Compliance é, portanto, prevenir tanto a prática de crimes no interior da empresa como a possível responsabilidade penal de seus dirigentes.