segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Só Judiciário pode autorizar envio de informações bancárias ao Fisco

Por Pedro Canário
Só o Judiciário pode confrontar direitos fundamentais para decidir, em cada caso, qual deve prevalecer. Por isso, a Receita Federal não pode violar o sigilo bancário dos contribuintes sem a devida autorização judicial. Foi o que decidiu o juiz federal José Airton de Aguiar Portela, da 2ª Vara Federal de Santarém (PA), ao suspender uma autuação fiscal. Para o juiz, a violação do sigilo sem autorização é “verdadeiro abuso de prerrogativa” por parte da Receita.
O caso chegou à Justiça Federal de Santarém depois de o Fisco ter autuado uma empresa em R$ 1,4 milhão por causa de um depósito bancário. A Receita entendeu que o depósito eram receitas não declaradas, sobre as quais incidem Imposto de Renda. Teve acesso às informações financeiras da empresa por meio de um acordo com o banco que previa o repasse de informações sem passar pelo Judiciário.
A possibilidade é prevista no artigo 6º da Lei Complementar 105/2001. O dispositivo diz que “as autoridades e os agentes fiscais tributários” só podem ter acesso a informações bancárias sigilosas de contribuintes se houver procedimento administrativo ou fiscal em curso.
O parágrafo único do dispositivo determina apenas que o Fisco preserve as informações em sigilo. No entendimento da Receita, isso autorizaria o envio das informações sem necessidade do crivo judicial, já que o órgão federal também tem obrigação de sigilo e o intuito do não repasse seria a preservação da intimidade dos contribuintes.
Direitos não absolutos
Mas o juiz federal Aguiar Portela discordou. Para ele, houve uma “ousadia legiferante” com a edição da LC 105. Ele ponderou que o direito à intimidade é descrito como fundamental na Constituição Federal, mas o Estado também tem o direito constitucional de arrecadar para financiar a sociedade. A questão, portanto, está no balanço entre princípios constitucionais, e por isso a Receita não pode agir sem a fiscalização do Judiciário.
Ele explica que a Constituição, na verdade, é o contrário do que pensa o Fisco. “Ao invés de outorgar prerrogativas” à Fazenda Pública, ela impõe limites à atuação estatal. E sempre para preservar os direitos fundamentais do cidadão — que, no caso de discussões tributárias, é o contribuinte.
O juiz federal ressalva que não há direitos absolutos na Constituição, conforme entende a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Por isso, sempre que os dois princípios (intimidade do contribuinte e a arrecadação pelo Estado) estiverem em conflito, deve ser feito um balanço com base nas particularidades de cada caso. E isso não pode ser feito pela Administração Pública de forma unilateral.
Dois lados
Portela defende a igualdade de direitos entre o público e o particular. “A colisão de direitos fundamentais reclama meditação complexa, casuística, intensa, proporcional, razoável e justa. Id est, tem-se uma controvérsia de tal magnitude que sua solução, iniludivelmente, só pode exsurgir da jurisdição estatal”, escreveu em sua sentença.
O juiz também ataca a lei. Afirma que o texto não pode “regrar de forma geral, genérica e abstrata as possibilidades de afastamento das garantias constitucionais”. Só um “um terceiro imparcial dotado de função jurisdicional” é que pode fazê-lo, e caso a caso.
“Há de ser assim para se evitar a banalização dos direitos e garantias individuais dos contribuintes”, explica. Do contrário, a exceção da violação do sigilo viraria regra em nome do “interesse público e de eficiência estatal”.
Repercussão geral
A matéria já foi discutida pelo Supremo em dois recursos extraordinários. No mais recente, de relatoria do ministro Marco Aurélio, o tribunal entendeu que o Fisco não pode ter acesso a informações sigilosas de contas bancárias de contribuintes sem autorização da Justiça. Por isso, o STF decidiu afastar a aplicação da lei no caso concreto e dar “interpretação conforme à Constituição” ao artigo 6º da LC 105.
Só que a decisão foi tomada em um recurso sem repercussão geral reconhecida. Portanto, seus efeitos se estendem apenas ao caso concreto — embora o Supremo tenha decidido, em Reclamação, que a aplicação monocrática dessa jurisprudência não viola a reserva de plenário para discussões constitucionais.
Desde julho 2009, no entanto, tramita sem votos um Recurso Extraordinário tratando da matéria. O Supremo reconheceu a repercussão geral do caso em novembro do mesmo ano, por unanimidade, mas nunca iniciou a discussão.
O relator da matéria é o ministro Ricardo Lewandowski. Pelas regras de tramitação de recursos do STF, todos os casos que tratam do tema reconhecido como de repercussão geral devem ficar parados na origem, sem decisão judicial de mérito. No entanto, o site do Supremo indica não haver processos sobrestados nesse caso.
Também circulam no STF pelo menos cinco ações diretas de inconstitucionalidade sobre o mesmo tema (2.386, 2.390, 2.397, 4.006 e 4.010).
Clique aqui para ler a sentença.
Processo 4203-51.2012.4.01.3902

Discussão sobre grampos trava no CNMP e tema volta a preocupar advogados

O Conselho Nacional do Ministério Público ainda não julgou o mérito de umPedido de Providências interno que avalia se (e como) o MP pode fazer interceptações telefônicas. O processo, que está para ser votado desde o ano passado, teve uma sucessão de pedidos de vista. Uma impressão compartilhada de dentro do CNMP é de que há uma tentativa de esvaziar a pauta. As últimas seis votações foram adiadas e três dos 14 conselheiros pediram vista dos autos.
Dentre as recomendações e análises do voto do então relator do caso, o ex-conselheiro do CNMP Fabiano Silveira (foto), atualmente integrante do Conselho Nacional de Justiça, está o pedido de monitoramento dos grampos por agente especializados e a centralização dos dados obtidos pelos sistemas de espionagem. Em maio de 2013, quando foi feito o levantamento, os MPs monitoravammais de 16 mil telefones simultaneamente.
Medidas
Para além das discussões sobre a legitimidade desse tipo de escuta feita pelo Ministério Público, advogados de várias partes do país afirmam que as interceptações telefônicas têm ultrapassado os limites do processo legal. É o que acontece em Santa Catarina, onde três casos de interceptação telefônica de conversas entre advogados e clientes, protegidas pelo sigilo profissional, foram usados em processos recentemente. 
A partir desse caso, o conselho pleno da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina aprovou um projeto para acompanhar o registro de grampos de conversas entre advogado e clientes nos autos processuais.
O plano, assinado pelo conselheiro Leonardo Pereima, pretende conscientizar as corregedorias do Ministério Público, Tribunais de Justiça, CNMP e CNJ para que sejam vedadas interceptações de conversas de cunho profissional de advogados com seus clientes. A ideia é, inclusive, acionar criminalmente os responsáveis por interceptações indevidas e disciplinarmente junto ao CNPM e ao CNJ os promotores e os juízes que violarem a prerrogativa do sigilo profissional da advocacia.
A seccional catarinense criou, inclusive, o cargo de procurador de prerrogativas para monitorar a situação, e orienta os advogados a acioná-la sempre que forem vítimas de escutas ilegais. A procuradoria é, ainda, responsável por pedir a íntegra de processos com trocas entre advogados e clientes para análise.
A lei e os operadores do Direito
A Lei de Escutas Telefônicas (Lei 9.296/96) é clara em classificar como crime a quebra segredo de Justiça ou o uso dos grampos para objetivos não autorizados em lei. Especificamente sobre a atividade advocatícia, a inviolabilidade do aconselhamento profissional por medidas de escuta também é garantido. A exceção é para o caso em que o advogado também é investigado. Ainda assim, em alguns casos pode-se “confundir” trechos de conversas do defensor com associação criminosa, afirma Leonardo Accioly, presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da OAB. “Muitas vezes, uma investigação tem acesso ao diálogo entre o advogado e o cliente e, segundo a ótica policial, o aconselhamento se confunde com associação criminosa”.
Um exemplo desse tipo de confusão aconteceu recentemente no Rio de Janeiro. Em setembro, a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu liminar em Mandado de Segurança contra o grampo e o uso de interceptações dos advogados de ativistas políticos em processos penais.
A liminar foi dada porque não havia qualquer prova de associação criminosa indicada no processo de quebra de sigilo. Alguns dos advogados tinham seus telefones grampeados há mais de cinco anos. A alegação para a interceptação fora simplesmente a suposta possibilidade de associação criminosa entre advogados e ativistas.
Accioly disse também que as comissões de prerrogativas de cada estado têm autonomia para julgar casos de irregularidade e, portanto, a comissão nacional não centraliza esse tipo de informação. “A não ser casos de muita repercussão”, explicou.
O advogado também vê com preocupação a falta de controle e acesso externos aos sistemas de vigilância do Ministério Público. “O problema do [sistema] Guardião [e outros meios de grampo] é esse: nós não temos acesso ao modo como o sistema procede. Em função disso, é possível ter acesso a conversas que sequer são objeto de investigação” disse. Ele lembra, também, que o Ministério Público não pode ter acesso a todas as peças do processo, pois sua função é de acusar.
Dignidade
Para o advogado criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes (foto) , a interceptação de conversas é “a coisa mais vil” que pode ser feita em um processo criminal. O decano, como ele mesmo se refere, entende que esse tipo de ação “transforma um juiz, um promotor, em um ‘espiador’ de fechadura”. Fernandes lembra de um caso para ele muito sintomático, em que chegaram a gravar o áudio de um condenado enquanto mantinha relações sexuais para tentar achar provas para outros crimes. O sigilo da atividade sexual é direito fundamental, diz o criminalista. E vaticina: “Isso tem que acabar. Se hoje interceptam um preso, amanhã grampeiam o telefone do Ministro da justiça. E fazem”.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

“Advogado de família” é fusão entre sacerdote, jurista e árbitro

Poderíamos conceituar o “advogado de família” como o resultado da fusão do comportamento de um sacerdote, de um terapeuta, de um jurista e de um árbitro conciliador.
No passado, dentro de uma concepção conservadora, se pretendeu caracterizar a figura do “advogado de família” como de um homem exemplar, que exteriorizasse condições comportamentais excepcionais e retilíneas de acordo com a moral da sociedade em que estivesse inserido, tais como: ser bem casado e bom chefe de família, pai de filhos, culto, praticante de uma religião, homem de poucos risos e sem qualquer jaça na sua vivência social.
Hoje, tais concepções estão ultrapassadas, não pesando esses aspectos mais como condição sine qua non para ser um destacado “advogado de família”. O que necessita, para o desempenho dessa especialização, é a vocação — que se traduz em linhas resumidas na capacidade de diagnosticar o problema alheio sem se envolver emocionalmente, mas, compreendendo os limites da emoção do cliente e suas necessidades e as reais vontades por trás do turbilhão de sentimentos que envolvem os problemas familiares. Por esse motivo, somente os homens calmos e pacientes, que possuam capacidade de absorver ansiedades e angústias de seus consulentes traduzindo suas necessidades e então os transmitindo paz, segurança e tranquilidade, não negligenciando a necessidade conjunta do bom respaldo terapêutico e analítico de profissionais afins, são dotados para o êxito desta maravilhosa, mas árdua e trabalhosa especialização. Nossa literatura não está restrita à ciência do Direito, mas também a outras afins, dentro das ramificações científicas que cuidam do interior do ser humano.
Seria um tanto pedante uma ode enaltecendo esta “nova” especialização, mas, importante lembrar que a mesma remonta em alguns aspectos históricos à figura primitiva das famílias que buscavam apoio entre os caldeus, os persas, os babilônios e os sábios filósofos: eram os que orientavam os povos com seus conselhos, que protagonizavam núcleo de vital importância para a sociedade — as entidades familiares. Não precisamos ser sábios ou filósofos para dar conselhos, mas não podemos nos afastar da leitura e da atualização do Direito de Família e das ciências que estudam o interior humano para que nossa atividade social seja proveitosa às pessoas que nos mobilizam.
Muitas vezes somos criticados no sentido de que nossa especialização abrange um conhecimento restrito do Direito, quando na verdade é justamente o revés, pois necessitamos ter informações de todas as outras áreas para pontuar e resolver os problemas que afligem as estruturas familiares: de Direito Comercial e Societário, quando nos envolvemos com arrolamento de bens de sociedades comerciais e partilha de patrimônio acionário. Do Direito das Coisas, quando temos que apreciar as comunicações de aquestos nos mais diversificados bens, inclusive nos semoventes. Direito das Sucessões, quando matérias atingindo hoje o novo instituto das uniões estáveis nos mobilizam para um parecer ou definição do título de uma companheira para sua respectiva habilitação nos inventários dos bens deixados por seu finado consorte.
Não somos fechados em nossa cultura do Direito, ao contrário, por ser como digo “o mais humano de todos os Direitos”, o de família obriga o profissional a estar sempre atualizado, não somente com as regras internas envolvendo esse campo específico, como também no Direito Comparado, notadamente, com os problemas envolvendo parte residente em outro país, ou com nacionalidade diversa.
Essa é a real característica do advogado que se envereda por tal ramificação, devendo estar sempre com os livros inerentes a permanente atualização do Direito, notadamente quando o Direito de Família não pode ficar estático, estando em permanente evolução, ou melhor, ebulição, acompanhando as permanentes alterações na sociedade.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Delação premiada somente pode ser entendida no ambiente pragmático

Por  e 

Circula na internet os termos do Acordo de Delação promovido entre o Ministério Público Federal e o acusado Paulo Roberto Costa, pelo qual se acorda sobre a pena do acusado no caso de aproveitamento das suas declarações, dando-se, em alguns autos, desconto da pena e, noutros, arquivamento das apurações. Alguns juristas se dizem perplexos. Buscar entender o fundamento de tal proceder, contudo, precisa dialogar com pano de fundo filosófico diferenciado, ou seja, pragmático. Ao mesmo tempo em que houve recrudescimento do sistema de controle social pelo agigantamento do sistema penal[1], percebeu-se que haveria avalanche de processos, cujos custos são inviáveis.
Assim é que a flexibilização do processo, mediante informalização eeficiência, com a imediata redução dos custos, pode ser verificada nos juizados especiais que são equipados com para-juízes. Ou seja, muita gente de boa vontade, mas que não responde ao mínimo de garantias que o sujeito processado faz jus, democraticamente. Guardadas as devidas proporções, houve a introdução da lógica anglo-saxã do “plea guilty/not guilty”, pelo acolhimento imediato da sanção ou acordos com objeto estranho ao processo penal brasileiro. No modelo americano, sem verdade substancializada, negocia-se sobre o enquadramento jurídico da conduta, o período da prisão, bem assim sobre os custos do julgamento[2]. Assim, tendo por fundamento lógica diversa, abre-se espaço de acordos para além da pena, por envolver a própria definição jurídica dos fatos. E a delação premiada é o exemplo palmar do que se passa no processo penal brasileiro, dada sua eficientização.
O domínio da informação nos jogos dinâmicos[3] implica na possibilidade de se tomar decisões terminativas do processo — ou seja, sem instrução processual, embora com conteúdo de mérito. Reside justamente na avaliação da prova possível (informação) a aceitação de benefícios processuais (conciliação, transação penal, suspensão condicional do processo, delação premiada[4], leniência[5] etc.). Com a informação até então apurada e as expectativas dos subjogos no horizonte, o jogador pode avaliar quais as implicações de se jogar ou não[6]. Não se trata de reconhecer que a tradição continental é melhor ou pior, dado que esta discussão é inoperante. O que importa é que as tradições implicam em práticas e modos de pensar diferenciados. Ainda que não dito, muitas das reformas recentes no ordenamento se deram pela fusão equivocada e irrefletida de tradições jurídicas, trazendo-se, não raro, institutos estranhos ao Direito Continental. Esse comércio de institutos do direito anglo-saxão, todavia, não acontece sem o estabelecimento de uma tensão decorrente da diferença de tradições filosóficas, isto é, de matriz causa-efeito, parte-se, sem muita aproximação, ao panorama pragmático, no qual a eficiência prepondera.
Após a viragem linguística promovida, dentre outros, pelo pensamento de Wittgenstein, a pragmática iniciada com Pierce deve ser trazida à baila com maior extensão. Em face de sua teoria de verdade, na pretensão de responder a indagação: como se dá o conhecimento, o pragmatismo provocou enorme controvérsia ao colocar em xeque a verdade fundante por dizer que o que o sujeito tem é apenas uma metodologia do conhecimento, nada mais.  Shook ao se debruçar sobre o pensamento dos pioneiros do pragmatismo americano (Pierce, James e Dewey) reconhece que os três concordavam que a inteligência humana decorre do conhecimento proveniente da experiência, advertindo que a mente transforma esse conhecimento, na pretensão de apaziguar a dúvida, criando crenças em face da ação preparatória[7].
Longe de reeditarem as discussões sobre a natureza da verdade, pretendem estar acima dessa querela interminável, propondo uma nova maneira de perceber o aumento da experiência e do conhecimento humano. O discurso, assim, busca argumentar contra todas as formas de idealismos, admitindo, entrementes, que “a realidade é muito mais ampla do que a totalidade de objetos de conhecimento reais e possíveis.[8] O verdadeiro é o que é cognoscível, sem que se caia na armadilha dos empiristas e racionalistas de que as possibilidades de conhecimento são as mesmas em todos os períodos da história, dado que a mente humana está aberta para o futuro. Contudo, tal qual os falsificacionistaspragmatistas exigem que a teoria seja testável (Popper).
Assim é que Rorty[9] é um interlocutor necessário porque sua produção autoriza o rompimento com diversos dogmas platônicos herdados daFilosofia da Consciência. As contribuições da pragmática e da hermenêuticaem que a verdade não é correspondência com a realidade, mas convenção, demonstram que a subjetividade se apresenta na produção científica. Deixando de resvalar na metafísica, critica os filósofos da linguagem — ideal ou ordinária — porque mantêm os pressupostos metafísicos, já que a contextualização desempenha um papel central na atribuição de sentido. Não se trata mais de significados conceituais, mas grupos de sujeitos empíricos, mediados pela linguagem, intersubjetivamente. A verdade sem correspondência com a realidade é a afirmativa de Rorty para descrever a pretensão do pragmatismo de, aproveitando a viragem linguística, proporcionar à linguagem o merecido lugar de destaque.
E o pragmatismo seria, assim, o “modo democrático de viver[10], já que as filosofias passam a ser vistas como ferramentas que podem ser usadas para muitas finalidades. Esse rompimento com o modo pelo qual se conhece ascoisas — não mais como pretensamente são — remete os pragmatistas para um universo desprovido da segurança conferida pela ilusão da realidade conhecida, rumo a um misterioso futuro melhor a ser construído. Não existem projetos estanques no qual o futuro pode ser compactado, mas respostas vagas e imprecisas capazes de devolver ao projeto em construção sua vivacidade, aguardando-se a surpresa. A teoria da verdade para os pragmáticos precisa substituir certeza por esperança, em algo a ser construído, substituindo-se os dualismos platônicos e kantianos. A verdade, então, é o que autoriza a distinção entre o conhecimento e a opinião bem fundamentada ou crença justificada, sem mais se preocupar com o conhecimento antecedente a ser revelado; a pretensão é a de lidar com os problemas a partir do momento em que surgem. 
As relações de sustentação empíricas entre as sentenças e o mundo a que se vincula se constituem a garantia de que nunca se poderá ser mais arbitrário do que o mundo permite. Apesar de não se poder afirmar como o mundo realmente é, ou sua natureza intrínseca, sob pena de resvalar na metafísica, existe o que Rorty denomina pressões causais, que dão às afirmações tidas por verdadeiras, em relação ao mundo, não um caráter representacional, mas causal, mantendo crenças. Os pragmatistas trocam a certeza pelaimaginação, pelo futuro, privando os epistemólogos do conforto da certeza científica, uma vez que, segundo eles, desde Platão nada mais precisa ser dito.
O método científico da consciência plena, pois, vaza mais uma vez, só que com uma pitada diferente. Não existindo a natureza a ser descoberta, restam somente audiências nas quais as crenças podem ser justificadas, sem se perder de vista que nenhuma dessas audiências se aproxima da natureza. Desprovido de sentido, assim, falar em racionalidade a-histórica, eterna, universal. As crenças justificadas são, pois, verdadeiras e temporais. Rorty sustenta:
Pode parecer estranho dizer que não há nenhuma conexão entre justificação e verdade. Isto é porque estamos inclinados a dizer que a verdade é o objetivo da investigação. No entanto penso que nós, pragmatistas, devemos agarrar o touro pelos chifres e dizer que essa afirmação é vazia ou que ela é falsa. A investigação e a justificação têm vários objetivos locais, mas nenhum objetivo geral chamado verdade. Investigação e justificação são as atividades nas quais nós, usuários da linguagem, não podemos deixar de nos engajar. Nós não precisamos de um objetivo chamado ‘verdade’ para nos auxiliar nisso – não precisamos disso do mesmo modo que nosso aparelho digestivo não precisa de um objeto chamado ‘saúde’ para fazer os órgãos funcionarem. Usuários da linguagem não podem evadir a justificação de suas crenças e desejos uns aos outros, assim como os estômagos não podem evadir a trituração dos alimentos. A agenda dos nossos órgãos digestivos é estabelecida pelos alimentos que estão sendo processados, assim como a agenda de nossa atividade de justificação é estabelecida pelas diferentes crenças e desejos que encontramos em nossos parceiros usuários da linguagem. Só haveria um objetivo ‘mais elevado’ da investigação se houvesse algo como a justificação última – justificação diante de Deus, ou diante do tribunal da razão, ao invés de justificação diante de meras e finitas audiências humanas.[11]
É perante esses auditórios temporais[12] que se procedem as justificações, sem que sejam eternas, primevas, fundantes, como queria a Filosofia da Consciência[13]. É isso que resta. O tempo como o fixador das verdades, uma vez que as futuras audiências e suas demandas poderão exigir novas condições, e a verdade de então será ultrapassada. O mundo, pois, não é mais de dualismos platônicosessência e acidente, substância e propriedade, aparência e realidade, mas de contínuas mudanças relacionais, movimentados no campo da linguagem, sem pretensão de representação. Oantiessencialismo constitui-se na proposta de aterrar essa distinção entreintrínseco e extrínsecoessência e matéria e se livra das preocupações sobre os métodos capazes de articular uma linguagem possível de desnudar a realidade.
 Na perspectiva de ‘se dar uma chance ao pragmatismo’, como já havia feito Wittgenstein[14], Rorty propõe que se vejam as coisas de maneiraantiessencialista, como se fossem números. Não se pode pensar, segundo afirma, numa natureza intrínseca do número 17: “Nós sugerimos que vocês pensem em todas essas coisas como sendo semelhantes a números no seguinte sentido: não há nada a ser conhecido a respeito desses objetos a não ser uma teia infinitamente vasta e indefinidamente expansível de relações que eles mantêm com outros objetos. Não há sentido em reclamar por termos de relações que não sejam eles mesmos relações, pois qualquer coisa que pode servir como termo de uma relação pode ser dissolvido em outro conjunto de relações, e assim por diante, indefinidamente. Há, digamos, relações de ponta a ponta em todas as direções — nunca alcançamos algo que seja mais que apenas mais um conjunto de relações.”[15]
Substituída a verdade pela utilidade relacional, sem distinguir as relações e as coisas relacionadas que, para os essencialistas, seriam diversas. A única coisa que pode ser conhecida sobre o objeto é se as sentenças que lhe digam respeito são verdadeiras. A descrição do objeto apenas pode lhe atribuir propriedades relacionais, segundo a qual: “Nós, antiessencialistas, tentamos substituir a imagem da linguagem como um véu que se interpõe entre nós e os objetos, pela imagem da linguagem como uma maneira de encaixarmos os objetos uns nos outros.”[16] Somente relacionando os substantivos com os adjetivos e verbos é que se pode atribuir significado às palavras, na cadeia de significantes, que desliza... no campo hermenêutico. Com esse pano de fundo e superando o essencialismo, quem sabe, pode-se entender o significado latente do Acordo de Delação Premiada ofertado e aceito, mas cujo efeito, todavia, não se pode, ainda, afirmar. 

[1]  MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Manifesto contra os juizados especiais criminais: (uma leitura de certa ‘efetivação’ constitucional. In: SCAFF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos de constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 350-352.
[2] SÈROUSSI, Roland. Introdução ao direito inglês e norte-americano. Tradução de Renata Maria Parreira Cordeiro. São Paulo: Landy Editora, 2001; MAIEROVITCH, Wallter Fanganiello. Apontamentos sobre Política Criminal e a “Plea Bargaining”. Revista de Processo, ano 16, n. 62, abr./jun. 1991; BLACK, Henry Campbell. Black`s Law Dictionary. [S.l.]: West Publishing Co., 1996. p. 1.152; RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. FERRO, Ana Luiza Almeida; PEREIRA, Flávio Cardoso; GAZZOLA, Gustavo dos Reis. Criminalidade Organizada. Curitiba: Juruá, 2014..
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014: KHALED, Salah. A Busca da verdade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.
[4] VALLE, Juliano Keller do. Crítica à delação premiada. Florianópolis: Conceito, 2012.
[5] LAMY, Anna Carolina Cesarino. Reflexos do Acordo de Leniência no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[6] O processo penal sem plea barganing e/ou Justiça Restaurativa é um modelo alheio ao custo estatal e desprovido de sentido real, ainda que imaginariamente movimente os que acreditam que prender o mundo resolve. O grande mérito do plea barganing é propiciar a reavaliação no decorrer do processo dos fatores informativos das (im)possibilidades probatórias, do custo das jogadas, da escassez de recursos (capacidade de assimilação), das condições do outro jogador e dos objetivos a serem alcançados.
[7] SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Trad. Fábio M Said. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 12
[8] SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano..., p. 19.
[9] RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
[10] RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Trad. Cristina Magro. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 12, p. 19.
[11] RORTY, Richard. Pragmatismo..., p. 44.
[12] GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. Richard Rorty: A filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 40.
[13] Tão bem criticadas por STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012.
[14] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 28.
[15] RORTY, Richard. Pragmatismo..., p. 67-68.
[16] RORTY, Richard. Pragmatismo..., p. 69-70.
 é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência

Machado de Assis tem um conto chamado Suje-se gordo. Não tem vírgula, não. Não é “suje-se, Gordo”.  Trata de um julgamento do qual se tira a seguinte lição: vá fundo na “maracutaia”. Tem de valer a pena. Se é para se sujar, suje-se gordo. Quem praticou pequeno delito, lascou-se; quem “sujou-se gordo”, deu-se bem. Essa é a moral da história do conto de Machado de Assis.
Relendo o conto, dou-me conta das discussões sobre os critérios para aferir o que é bem jurídico relevante em terrae brasilis. Historicamente o direito penal tem sido feito para os que não têm e o direito civil para os que têm. Já disse isso várias vezes (afinal, sofro de LEER – Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo): o Código Criminal de 1830 foi feito para pegar escravos, o de 1890, para pegar ex-escravos e seus filhos, e o de 1940 para proteger nitidamente a propriedade privada contra os ataques da patuleia, a ponto de dobrar a pena no furto nos casos de escalada, chave falsa, etc. Elementar isso, pois não?
O problema é que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda continuamos com essa atribuição liberal-individualista de sentidos ao que seja bem jurídico. Isso salta aos olhos quando comparamos os tipos penais do furto qualificado com crimes como sonegação de tributos e lavagem de dinheiro (poderia fazer um quadro comparativo, mas o espaço não permite).
A todo o momento isso volta à tona. A falta de uma filtragem hermenêutico-constitucional na legislação penal continua fazendo vítimas cotidianamente. E quem mais sofre são naturalmente os componentes do andar de baixo da sociedade.
Digo isso para retornar à discussão sobre o sentido do princípio que vem salvando, em determinadas circunstâncias, a teoria do bem jurídico no tocante aos crimes contra a propriedade, especialmente o furto. O problema é a falta de uma universalização de sua aplicação. Ou, mais do que isso, posso afirmar que o problema é a ausência do critério da igualdade na sua aplicação pelos tribunais.
Explico. Recentemente o Superior Tribunal de Justiça voltou a enfrentar a questão da aplicação da insignificância no crime de descaminho, considerando para tal o valor de R$ 10 mil (artigo 20, caput, da Lei 10.522/02) e/ou a Portaria 75 do Ministério da Fazenda que, em seu artigo 1º, inciso II, fixou o valor mínimo de R$ 20 mil para execução de dívidas tributárias.
A problemática veio à baila no AgR no Recurso Especial 1.4.657-RS (2014/07126-). O caso concreto não apresenta relevância para ser discutido, porque o valor ilidido não chegou a R$ 100. Entretanto, o que é importante voltar a discutir é a (ausência de uma) criteriologia utilizada pelo Poder Judiciário para dizer se uma conduta é insignificante penalmente ou não.
Minha questão, aqui, não é enfrentar e/ou criticar a aplicação analógica da Portaria 75 do Ministério da Fazenda (veja-se a decisão do TRF-3) ou o valor pela metade determinada pela Lei. Tampouco quero questionar a aplicação do favor legis para a sonegação de tributos prevista pela Lei 10.684/03, que estabelece que o pagamento do valor sonegado antes do recebimento da denúncia é causa de extinção da punibilidade. Também não quero discutir ofavor legis dado no artigo 168-A, parágrafo 2º do Código Penal a quem sonega contribuições da previdência... Igualmente não vou questionar a aplicação de uma jurisprudência generosa para quem paga o tributo sonegado mesmo após a sentença transitada em julgado (caso, por exemplo, de Marcos Valério que, no Recurso Especial 942.769/MG, o STJ decidiu pela extinção da punibilidade do crime de sonegação fiscal pelo pagamento de parcelas não recolhidas em momento posterior ao recebimento da denúncia, consagrando o entendimento que o pagamento do tributo a qualquer tempo enseja o fim da possibilidade de responsabilização penal). Não é isso que está em causa.
Mas, então, o que quero discutir? Simples. Quero colocar em xeque a isonomia, a igualdade e a República. Ou existe igualdade, isonomia ou não somos republicanos (na verdade, não somos, mas como sou um otimista “como se”, a partir da filosofia do als ob de Hans Vaihinger...). Como explicar que juízes e tribunais da República se negam a aplicar os mesmos critérios para os crimes contra o patrimônio sem violência, como o furto, a apropriação indébita e o estelionato?
Dois problemas sérios. O primeiro é não aplicar o favor legis da sonegação de tributos para quem devolve a res furtivae nos casos de furto, apropriação indébita ou estelionato. Por que o sujeito que sonega é mais cidadão que o que furta? Por que alguém que ataca o patrimônio do povo é melhor visto pelo establishment que alguém que mete a mão no patrimônio de um particular?
Segundo: por que alguém que pratica descaminho é mais bem visto que alguém que furta? Ou seja, por que para quem pratica descaminho o valor da insignificância chega a valores que a maioria da malta leva um ano ou mais para ganhar e para o furto R$ 200 já é muito? Aliás, se pensarmos em alguns setores do Judiciário e do Ministério Público, o tal principio da insignificância nem existe (ver aqui). A questão do modus aplicativo da insignificância mostra-se extremamente problemática. Veja-se, a esse respeito, o HC 101.998 (Rel. Min. Toffoli, 1ª Turma do STF, j. 23-11-2010), envolvendo furto de barras de chocolate, sendo que a 1ª Turma do STF entendeu que não incidia o princípio da insignificância ao caso porque o agente seria reincidente específico em crimes contra o patrimônio. Ali, houve nítida violação do Direito Penal do fato, aplicando-se o vetusto Direito Penal do autor, a despeito da inexpressiva lesividade da conduta ao bem jurídico tutelado (no caso, nove barras do chocolate diamante negroavaliadas em R$ 45).
Aqui, novamente temos de lembrar a questão fulcral: igualdade, isonomia e aplicação por integridade e coerência. De um lado, R$ 10 mil para descaminho; de outro, R$ 10 negado para furto (ou outros valores para furtos que não tratem de reincidência). Também os pequenos crimes cometidos contra o meio-ambiente são vistos com mais simpatia por setores do Poder Judiciário, como, por exemplo, a absolvição de pessoas que pescaram um peixe dourado (sete quilos) recentemente (ver aqui). Registre-se, desde logo, a correção da decisão do 3ª. Turma do TRF 1ª. Região. O difícil é entender a movimentação de toda a máquina pelo Ministério Público Federal para ver condenados 3 patuléus que, de caniço e samburá, foram pescar alguns peixes. Interessante: naquele Habeas Corpus do caso Valério acima relatado, o parecer do MPF foi a favor da aplicação do favor legis da lei da sonegação, mesmo contra legis, porque já transitada em julgado a condenação do contador do mensalão. Dois pesos, duas medidas...
Sigo. Fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos e o furto sem prejuízo (já tratei disso em outra coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato:
ESTELIONATO. ÔNUS DA PROVA.
No estelionato, mesmo que básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da denúncia, inibe a ação penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências possíveis para espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, pena de não vingar condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim).
Lição de Lênio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997). (íntegra aqui)
E isso lá nos anos 90 do século passado. Aliás, escrevi sobre isso já um ano após a Constituição de 1988.
Passados tantos anos, ainda não conseguimos encontrar um ponto de estofo para a aplicação equânime (falo da fairness dworkiniana) do critério-principio da insignificância. Penso que, para isso, temos que nos desvestir da velha dogmática jurídica, carcomida pelo paradigma liberal-individualista de bem jurídico.
Ainda estamos inseridos no imaginário que albergou o Código de 1940. Somos, portanto, a-históricos. Perdemos o trem da história. Vivemos do passado. A doutrina penal, em boa parcela, continua utilizando os exemplos de Caio, Mévio e Tício, onde a vigência é igual à validade e o patrimônio individual é mais importante que o patrimônio de todos. Afinal, o que é isto — a teoria do bem jurídico-constitucional? Eis uma boa pergunta a ser respondida.
Enquanto não encontrarmos uma resposta adequada, vamos continuar a aplicar a insignificância de modo ad hoc. Do mesmo modo, vamos continuar a aplicar favores legais para um grupo social e deixar de aplicar para a maioria, que frequenta o andar de baixo de nossa sociedade estamental.
Numa palavra e como retranca: entre Hobbes e Rousseau, torço pelo Hobbes F.C., portanto, não tenho ilusões com o direito penal, com a sociedade de bem estar, com a bondade humana, etc. Não sou nem minimalista, nem maximalista: apenas a favor de um direito penal e uma teoria do bem jurídico constitucionalmente adequados. Nisso está o tratamento equânime (fairness) dos bens jurídicos a ser penalizados; nisso está a forma republicana de aplicar a lei: se um sonegador pode receber benesses ao devolver o valor sonegado, por que razão o cara do furto não pode fazer o mesmo? Ou arrumamos isso ou temos de dar razão ao personagem do conto de Machado: suje-se gordo!
Post Scriptum : o STJ rompe com o tabu da reincidência
Leio que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, seguindo o voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior, trancou — de forma acertada — ação penal em um caso de furto de chocolate vindo de São Paulo (ler aqui). O paciente era reincidente. Esse assunto ainda era tabu, tanto é que o Supremo Tribunal Federal afetou ao plenário a discussão da aplicação ou não do princípio da insignificância nos casos de reincidência. Aqui também quero dizer que fui o primeiro a defender a tese de que a reincidência tem de ser discutida, mormente em termos de ser ou não inconstitucional. Trata-se de um bis in idem e uma violação da secularização que deve haver, no direito penal, entre direito e moral. O Estado não pode punir a sua própria incompetência. E nem pode pretender “melhorar” o indivíduo. Direito penal não é para isso. Durante um considerável período, a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) aplicava minha tese. Perdi recentemente no Supremo Tribunal. Mas, pelo jeito, deixei algumas sementes.
Não será dito, por óbvio, que a reincidência é, “em si”, inconstitucional. Mas pode ser que será dito — como já o foi pela 6ª Turma do STJ — que, em determinados casos, ela não se aplica. Como venho sustentando, toda aplicação de princípio no processo penal é uma hipótese de nulidade parcial sem redução de texto. Mas esse é um assunto para outra coluna. 
Post Scriptum IIa dialética do concreto e o direito
Efetivamente, tenho de estudar mais. Minha ignorância não tem limites. Por isso, leio de tudo. E como aprendo coisas... Há pouco, li no ConJur um artigo em que se fazia uma ode a um tal Princípio da Livre Interpretação da Norma em Concreto (ler aqui). Simplesmente incrível. Ao saber da “existência” desse princípio (mais um para minha coleção) — coisas que se descobre aqui no ConJur — fiquei pensando em, efetivamente, estocar alimentos. O que seria “livre interpretar a norma em concreto”? Confiar na sapiência e na cognição do juiz? No seu sentimento do “justo”? Na sua liberdade de dizer o que é justo? Por favor. O que mais os juristas descobrirão e inventarão? By the way, não resisto em contar: Lembro-me de uma brincadeira com as palavras. Meu professor de filosofia no mestrado na década de 80 mandou ler o livro A Dialética do Concreto, de Karel Kosik. Fui à livraria da universidade. Lá, o moço me disse: “ — Dialética do Concreto? Concreto, concreto... Hum, hum.  Vá na parte da física. Ali tem tudo sobre concreto, asfalto, pedras”. Pois é. Interpretar livremente a norma em concreto deve ser algo parecido. Sim... In concreto!

terça-feira, 7 de outubro de 2014

As razões pelas quais Joaquim Barbosa pode e deve se tornar advogado


Tributaristas devem ser capazes de olhar para a floresta sem ignorar as árvores. Temos o dever de examinar fatos que possam afetar nossa profissão, mesmo que de forma indireta. Tudo o que acontece no Supremo Tribunal Federal obriga-nos a reflexões que ultrapassam os limites das questões tributárias. Ao recebermos nossa carteira de advogado fizemos o solene juramento:
“Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”
Assim, a discussão em torno do deferimento ou não da inscrição do ex-presidente do STF na Ordem dos Advogados do Brasil,  embora nos pareça apropriada, vem maculada por um viés ideológico que não deveria inspirar discussões jurídicas.
Qualquer pessoa, advogado ou não, pode impugnar inscrição ante suposta inidoneidade de quem deseja ser advogado, como se vê pelo parágrafo 3º do artigo 8º da Lei 8.906.
Neste caso, não é qualquer pessoa ou uma pessoa qualquer quem apresenta a impugnação: trata-se do presidente da OAB-DF e um advogado respeitado, que não precisa de factóides para nada. Isso é o que mais nos espanta.
Examinando-se a questão de forma isenta, conclui-se que Joaquim Barbosa deve ter sua inscrição aceita pela OAB e na remota hipótese de que, acometidos por insanidade coletiva, os conselheiros brasilienses  decidam de forma contrária, o Judiciário obrigará nossa entidade a concedê-la. Teríamos a entidade desprestigiada.
Vamos um pouco além: Joaquim pode e sobretudo deve ser advogado.
O ex-ministro, embora tenha agido como ali descrito — o que está comprovado e é público e notório — não pode ser legalmente impedido de tornar-se um de nós. A inicial da impugnação ofertada no caso invoca afirmação feita em desagravo feito a quem fora ofendido pelo que deseja ser um de nós. Isso não autoriza a negativa da inscrição, nos termos da lei vigente.
O fundamento da impugnação está correto: suposta falta de idoneidade moral, requisito exigido pelo inciso VI do artigo 8º da Lei 8.906.  O conceito do que se exige não é subjetivo, mas sujeito a variações ao longo do tempo, do lugar e dos costumes. Trata-se, assim, de norma sujeita a interpretação.
Idoneidade moral é “o conjunto de virtudes ou qualidades morais da pessoa que faz com que esta seja bem conceituada na comunidade em que vive, em virtude do reto cumprimento dos deveres e dos bons costumes”. (Enciclopédia Saraiva de Direito).
Os fatos praticados pelo nosso futuro colega Joaquim Barbosa em nenhum momento fizeram com que ele se tornasse pessoa que gozasse de mau conceito na comunidade em que vive Mesmo que a maioria dos advogados não goste dele, a comunidade não é composta apenas de advogados e há muitos que o adoram.
O maior pecado de Joaquim foi dizer o que pensa, fórmula eficaz para conquistar inimigos. Um advogado paulistano certa vez ouviu de uma colega: “Você pegou pesado. O que o juiz vai ficar pensando a seu respeito?” A resposta foi esclarecedora: “Espero que não seja o mesmo que eu penso dele!”
Felizmente os advogados não somos perfeitos. Muitas pessoas que integram a comunidade de que fazemos parte apontaram o ex-ministro e nosso futuro colega como presidenciável. Isso é relevante: poucos advogados receberam essa manifestação de apreço social.
Dentre os requisitos para se tornar advogado encontra-se a idoneidade moral, que a lei não define, mas da qual menciona uma espécie: a prática de crime infamante.
Infamante, na definição do léxico, é o que infama, que é capaz de infamar, que tira a fama. Rodrigo Fontinha (Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa, Editorial Domingos Barreira, Porto, Portugal, sem data) registra que infame é “Sem (boa) fama; que perdeu a reputação honrosa; vil; repugnante; abjecto; que pratica infâmias”. Registra, ainda, que “infamar” , do Latim  “infamare”, significa “Tirar ou procurar tirar a fama a (uma pessoa ou coisa personificada); difamar; desacreditar; vexar com infâmias; tornar-se infame, pelas más acções praticadas; desacreditar-se; perder a boa reputação; desonrar-se.
Se infamante é o crime que faz alguém perder a boa fama, a honra, a idoneidade moral, sempre é bom lembrar que a literatura já registrou:
“Que a boa fama, para o homem, senhor, como para a mulher, é a jóia de maior valor que possui. Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro. É alguma coisa e é nada. Assim como era meu, passa a ser de outro, após ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele não enriquece e a mim me torna totalmente pobre.” (Shakespeare, “Otelo, o Mouro de Veneza”, ato III, cena 3, palavras de Iago a Otelo)
Orlando de Assis Corrêa e outros, advogados no Rio Grande do Sul e ex-Conselheiros Federais e também da OAB-RS escreveram que:
“...não existe, em nosso Direito Penal, a qualificação de infamante, para qualquer delito. Fala-se, e muito, em crime infamante, mas não há tipificação alguma que conduza a uma certeza quanto a esta qualificação....Pensamos que dificilmente algum Conselho Seccional possa negar a inscrição a algum interessado com base neste dispositivo. Melhor fora dizer-se simplesmente  “condenado por crime a cuja pena deva ser cumprida em regime de prisão fechada, etc.”  - Poderá, entretanto negar-se a inscrição sob a alegação de inidoneidade moral, configurada pela prática de crime pelo qual o interessado foi condenado.” (“Comentários ao Estatuto da Advocacia...”, AIDE EDITORA, Rio de Janeiro, 1997, páginas 65/66).
Pode ser considerado como infamante o crime praticado pelo advogado quando paga propina a servidor público com objetivo escuso. Tal situação está descrita na decisão do TRF-2 – AMS 200651010243872 RJ (DJU 22/06/2011) de cujo acórdão destacamos:
“O apelante .pagou a importância de R$ 200,00 (duzentos reais) a servidor do TRT da 1ª Região para que subtraísse processo judicial da Secretaria com o fim de beneficiar seu cliente evitando-se a execução em prejuízo do reclamante no citado processo trabalhista. Consta da Decisão que em virtude de prática de crime infamante, o impetrante tornou-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia.  Não obstante a alegação do apelante de que o conceito de crime infamante é indeterminado, ao se analisar a sentença condenatória do Juízo Criminal, verifica-se que o fato criminoso praticado pelo impetrante se enquadra no conceito da doutrina pátria, que considera como infame o crime praticado por advogado, profissional de direito, querepercute contra a dignidade da advocacia, atingindo e prejudicando a imagem dos advogados. O controle judicial do ato administrativo deve ser restringir aos aspectos formais e à legalidade da instauração do processo administrativo. .Não apontada qualquer irregularidade na instauração do processo administrativo em que foi aplicada a sanção de exclusão do impetrante dos quadros da Autarquia Profissional, há que se manter a sentença que denegou a segurança e manteve a decisão da OAB/RJ”.
Sem dúvida ficou demonstrado o desapreço de Joaquim à advocacia. Mas juramos defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça...”. Não podemos aceitar que tal desapreço tenha reduzido a dignidade da advocacia, atingindo e prejudicando a imagem dos advogados.
A dignidade da Advocacia — que o acórdão deveria grafar com A maiúsculo face ao disposto no artigo 133 da Constituição Federal — não é atingida com destemperos de magistrados que se julgam superiores a outras pessoas. Todos os que são mantidos com o dinheiro do Povo deveriam decorar, como se fosse texto de livro sagrado, estas palavras:
"Quem serve ao Estado serve ao público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do Povo, só por isso, também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em nossa união. O Padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o salário do Presidente da República e dos seus Ministros, dos Deputados e dos Senadores, dos Ministros dos Tribunais é o mesmo que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados. Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados do Povo brasileiro." Ministro Edson Vidigal, presidente do STJ  ,(in www.serpro.gov.notícias, 13.04.2004)
Ao afirmar que advogados levantam às onze da manhã, não cometeu ele qualquer ato que o tornasse inidôneo. Foi só uma brincadeira, ainda que sob a proteção daquela capa ridícula que usam os magistrados, como se fossem vampiros.
Ora, advogados podem levantar no horário que lhes aprouver, pois seus honorários  não são pagos pelo povo. Em São Paulo isso é ótimo, pois podemos almoçar em casa, reduzir o stress do transito e fazer nossos estudos e petições à noite. Expediente rígido deve ser observado por assalariados e mesmo para estes já há a possibilidade do trabalho em casa ou qualquer outro lugar. Advogado que não usa a tecnologia deveria ir ao museu e lá permanecer. Não me ofende quem disser que levanto a qualquer hora. Isso é problema meu.
Essa história de tentar impedir de advogar quem tenha ofendido a Advocacia é um grande engano e grave falta ao juramento: devemos defender a Justiça, não promover vinganças.
Por outro lado, a negativa de inscrição deve ser por maioria qualificada do Conselho Secional e sujeita-se a  recurso perante o Conselho Federal, além das medidas que o rejeitado deve impetrar no Judiciário. Salvo casos excepcionais como o já citado, a Justiça ordena a inscrição, face à garantia constitucional ao trabalho. Não importa que o cidadão tenha ou não aposentadoria e menos ainda seu valor. Trabalhar é direito inviolável de qualquer cidadão em qualquer lugar do mundo.
Afirmar que servidor aposentado possa cometer ilícitos aproveitando-se de seu status é admitir que haja cúmplices. Simplificando: dizer que juiz aposentado pode traficar prestígio nos tribunais, é admitir que existam meliantes a beneficiar-se desse tráfico e criminosos travestidos de advogados que concordam com tais safadezas. Simples assim. Imaginar que alguém quer ser advogado para agir de forma errada é comportamento aético, mesquinho, medíocre. E isso não é simples: é complicado.
Também parece-nos que o assunto vem sendo tratado de forma errada pela imprensa. Vem sendo publicada a rejeição como se fosse coisa decidida. Jornalistas possuem razão para odiar Joaquim Barbosa. Muitos advogados também. Jornalistas também não são as pessoas mais queridas do planeta.
A tentativa grotesca de colocar lado a lado numa foto de revista José Dirceu e Joaquim, afirmando que o primeiro, já condenado, é advogado e este não pode ser, apenas revela que o meu saudoso colega Aloysio Biondi tinha razão ao dizer: A falta de ética da imprensa chega a tal ponto, que se chega a inverter completamente  a informação para enganar o público.” (Caros Amigos, agosto/2000)
Acredito e espero que o conselho da OAB-DF rejeite a impugnação. Pelo que sei é excelente a atual administração da OAB-DF, cujo presidente tem seu trabalho reconhecido por todos. Não seria razoável que uma decisão equivocada coloque em risco esse justificado prestígio.
Quanto ao colega Joaquim: seja bem-vindo! Venha ver o que é bom para a tosse ou para a coluna! Venha para a trincheira, irmão! 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Procuradora usa "presunção de fuga" contra Eike Batista, reclama advogado

O advogado Sérgio Bermudes, que representa o empresário Eike Batista, afirma que a procuradora da República Karen Kahn quer “construir um terreno para uma medida drástica, que a lei não permite”, segundo noticiou o jornal Folha de S.Paulo.
A manifestação do advogado é uma crítica à “preocupação” de Kahn, do Ministério Público Federal em São Paulo, de que Eike, seis ex-diretores e um diretor da antiga OGX (hoje OGpar) fujam do país. Eles são acusados de crimes como formação de quadrilha, falsidade ideológica e indução de investidores ao erro.
"Basta ver na nossa história penal quantos fugiram. Em especial aqueles que têm dupla nacionalidade. Para que isso não ocorra, é necessário uma Justiça ágil. Estamos falando de gente que tem suporte financeiro", afirmou Karen.
Bermudes retrucou. "Fica muito claro o interesse dela. Ele [Eike] já esteve fora do país inúmeras vezes e sempre voltou. Não há medida restritiva”, afirmou, acrescentado não existir "presunção de fuga" do país por parte de ninguém, referindo-se aos demais réus do caso. "Eu sei o que ela está querendo [a prisão]."
A procuradora, no entanto, ainda não decidiu se pedirá à Justiça a apreensão dos passaportes dos acusados ou a prisão preventiva. Segundo ela, para a decretação de detenção, o Judiciário deveria amadurecer “a gravidade desses crimes”.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Justiça Federal concede pensão por morte a menor tutelada pelo avô

Enteados e menores tutelados equiparam-se a filhos, para fins de pagamento de pensão por morte, mediante declaração do segurado e comprovação de dependência econômica. Com esse entendimento, 9ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu que o INSS deve pagar o auxílio à neta de um beneficiário que vivia sob guarda dele.
A tese do colegiado baseou-se no artigo 16, parágrafo 2º, da Lei 8.213/91: "O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento"
Para o relator do processo, desembargador Souza Ribeiro, no caso, “a relação de dependência econômica entre a autora e o extinto advém da guarda definitiva outorgada judicialmente ao avô, o que resulta na dependência presumida por lei”.
O desembargador acrescentou que, conforme o princípio constitucional da proteção aos menores, o Estado deve assegurar, com prioridade, a proteção às crianças e aos adolescentes, "abrangendo aqueles que estejam sob tutela ou guarda judicialmente outorgada". Com informações da assessoria de imprensa do TRF-3.
Processo 0029542-34.2011.4.03.9999

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Política e religião: os limites da tolerância

Por Pedro Pulzatto Peruzzo
Poltica e religio os limites da tolerncia
Sempre ouvimos dizer que o Estado é laico, no entanto não estamos acostumados a refletir sobre o que isso significa. Há quem diga que a laicidade do Estado significa que toda lei e toda política pública deve assumir uma posição ateísta. No entanto, se lermos o preâmbulo da nossa Constituição Federal de 1988 veremos que nosso principal documento político foi “promulgado sob a proteção de Deus”! Diante do texto do preâmbulo da nossa Constituição, precisamos nos perguntar que Deus é esse que nos protegeu quando da promulgação da nossa Carta Política.
Quero começar minha reflexão sugerindo desde já que esse Deus que aparece no preâmbulo da nossa Constituição é a referência de todas as religiões e crenças. Esta afirmação exige dois esclarecimentos iniciais: 1- os ateístas permanecem prestigiados pela Carta Política de 1988, pois a referência a Deus no preâmbulo da Constituição não exclui ninguém; muito pelo contrário, apenas reconhece as origens religiosas dos diversos grupos culturalmente diferenciados que integram a nossa comunhão nacional; 2- quando falo em religiões e “crenças”, me refiro tanto às religiões que acreditam que Deus é semelhante aos seres humanos, como às religiões que acreditam que Deus é semelhante aos animais ou ainda às crenças que entendem Deus como um foco de energia. Enfim, esse Deus constante no texto constitucional não é excludente.
No segundo parágrafo deste texto eu afirmei que esse Deus que aparece no preâmbulo da nossa Constituição é a referência de todas as religiões e crenças. Digo isso porque no artigo da Constituição de 1988, que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos, a liberdade religiosa e de crença aparece em duas ocasiões de maneira bastante plural:
Art. 5º, VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 5º, VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Outros artigos da Constituição também cuidam da liberdade de crença e religiosa.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Art. 210, § 1º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 226, § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Como fica claro, a liberdade de crença e de exercício dos cultos religiosos, bem como a impossibilidade de privar alguém dos seus direitos por motivo de convicção religiosa, orientam as relações entre as pessoas. Uma pessoa não pode discriminar outra pessoa por motivo de crença ou religião. Do mesmo modo, a própria crença e orientação religiosa são consideradas de livre escolha, e isso fica claro quando o artigo 210 da Constituição diz que o ensino religioso será de matrícula facultativa, respeitando as opções ateístas, por exemplo.
A grande questão que se coloca é que o atual momento político tem sido marcado pela exclusão que alguns candidatos têm promovido a partir da forma como eles e seu grupo se relacionam com Deus e, mais do que isso, como esses grupos ganham muito dinheiro ao venderem e legitimarem apenas uma forma de se relacionar com um único Deus. Isso é preocupante, pois do mesmo modo que a Constituição exige que todas as pessoas respeitem a liberdade de crença e de religião umas das outras, a Carta Política também exige que o Estado (e os que exercem cargos políticos) respeite TODAS as crenças e orientações religiosas, inclusive a crença de que Deus não existe.
O artigo 19, inciso I, da Constituição, diz: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Isso significa que o Estado não pode prestigiar uma religião ou se pautar numa religião para elaborar leis ou políticas públicas. No entanto, não significa que a pluralidade de crença não deve ser protegida pelo Estado. Este ponto é muito importante, pois diante dessas regras constitucionais, podemos concluir que a presença de bancadas religiosas no Congresso e a presença de candidatos com discursos religiosos para a chefia do Poder Executivo não seria um problema em si. Se no Brasil vale a regra da liberdade religiosa e de crença, tanto os ateístas como os religiosos podem representar o povo.
Opa! Eu disse POVO!
Eu realmente acredito que o ateísmo ou a religiosidade de um líder político não seja um problema em si. O problema, e aqui está o ponto central deste texto, é quando esse líder ateísta, evangélico, muçulmano, umbandista, assume um cargo representativo do povo e o exerce apenas para os ateístas, para os evangélicos, para os muçulmanos ou para os umbandistas, se afastando do seu mandato democrático e assumindo, equivocadamente, um mandato religioso. Aos religiosos que pretendem desempenhar a função de pregadores a Constituição garante os locais de culto, direito absolutamente legítimo num país de pluralidade religiosa. No entanto, preciso lembrar que nem o Poder Legislativo, nem o Poder Executivo e nem o Poder Judiciário é um local de culto!
Assumir um cargo de representação democrática para impor concepções religiosas de qualquer ordem é transformar o que é de todos (res pública) em algo restrito a apenas uma parcela do povo. Um Deputado evangélico ou católico que defenda a liberdade religiosa o faz dentro dos seus direitos constitucionais; no entanto, um Deputado evangélico ou católico que recorre à religião para impedir o acesso de homossexuais ao mesmo rol de direitos garantido aos heterossexuais se afasta da finalidade republicana do seu mandato.
O problema de um titular de cargo público fundamentar em crenças religiosas opiniões que terão reflexos em leis ou em políticas públicas aplicáveis a todos reside exatamente no fato de que essas opiniões podem ser aplicadas a todos. Numa República constituída em Estado Democrático de Direito, as leis e as políticas públicas necessariamente precisam considerar a pluralidade do povo, pois é esse povo, com toda a sua pluralidade, que é o real titular do poder. Conseguir entender que uma lei que garanta a liberdade religiosa pode ser democrática e republicana e que uma simples omissão ou retrocesso legislativo pode caminhar na contramão da proposta democrática constante na Constituição é fundamental para a compreensão dos limites da tolerância.
Algumas questões que tocam a ideia de tolerância são abordadas de maneira muito interessante no texto Os limites da tolerância, de Rainer Forst, em que o autor reflete sobre a utilização de símbolos religiosos em escolas (intolerante é quem ostenta ou quem quer proibir a ostentação?), casamento gay (intolerante é quem quer ampliar o conceito de família ou quem quer impedir essa ampliação?) e xenofobia (intolerante é quem não entende a primazia do nacional ou quem não entende que os imigrantes são titulares de direitos mínimos?).
Forst reconhece que: (…) pode-se distinguir entre tolerância como uma prática (de um Estado, por exemplo) e como uma atitude ou mesmo uma virtude, a qual chamamos de aceitação. A primeira pode estar presente em uma sociedade sem a última. Além disso, Forst apresenta dois requisitos para a tolerância, quais sejam a “reciprocidade” e a “generalidade”:
(…) Reciprocidade, nesse contexto de justificação, significa que não se reivindiquem certos direitos e recursos que são negados aos outros, e que nossas próprias razões (valores, interesses, necessidades) não sejam projetadas sobre as dos outros ao defendermos nossas pretensões. Deve-se estar disposto e apto a sustentar normas básicas com razões que não estejam fundadas em verdades “superiores” ou em concepções do bem que possam ser razoavelmente rejeitadas por outros com identidade ética e cultural diferentes. Ademais, de acordo com o critério da generalidade, as razões para as normas básicas devem ser reciprocamente aceitáveis e compartilháveis entre todos os cidadãos, não apenas entre os grupos dominantes. Compreendidos corretamente, os critérios de reciprocidade e de generalidade implicam que não é qualquer dissenso que pode invalidar normas gerais, mas apenas o dissenso que levante objeções que não podem ser, elas mesmas, rejeitadas com base nesses critérios.
Ou seja, as discordâncias que surgem em processos respeitosos de diálogo a respeito da forma como normas básicas de convivência podem atingir a generalidade que garanta a todos o recurso a elas para fazerem valer seus direitos reciprocamente não são um problema. O problema reside nas discordâncias que, como resultado, dão ensejo a imposições de normas que só fazem sentido a um grupo fechado de pessoas. Em avaliação bastante esclarecedora a esse respeito, Forst diz:
(…) Esse é o caso do casamento homossexual, em que os casais demandam as mesmas possibilidades legais de outros casais aos quais se permite o casamento. Enquanto essa alegação de direitos iguais é baseada na reciprocidade política, os contra-argumentos que negam esses direitos iguais e se apóiam em visões não-generalizáveis (religiosas, por exemplo) para se justificarem violam tanto o critério da reciprocidade como o da generalidade. Uma mera “tolerância” social de formas de vida homossexuais, como muitos defendem, não é suficiente (ainda que seja também “tolerância” de acordo com a concepção como permissão); em vez disso, o reconhecimento legal igual é o que a justiça exige.
Forst deixa claro que tolerar por respeito não exige nutrir estima por uma prática, mas unicamente entender que a permissão pelo confinamento não é suficiente para traçar os limites da tolerância. Se um evangélico não concorda com a união homoafetiva, então ele tem o direito de não adotar esse modelo de união para ele. No entanto, se ele exigir a proibição ou o confinamento da homoafetividade apenas em locais específicos, ele extrapola o limite da tolerância e abre campo para que outras pessoas assumam o poder e proíbam os cultos evangélicos ou imponham a obrigação de realização desses cultos em locais fechados e silenciosos… A medida do respeito é o próprio respeito!
Nesse sentido, a intolerância não surge quando grupos religiosos ou ateístas assumem o poder, mas quando a religião ou o ateísmo desses grupos impede a religião, o ateísmo ou as lutas políticas por direitos de outros grupos.
Por fim, importante esclarecer que a omissão em relação a qualquer tema é uma posição inescusável de qualquer cadidato. Nenhum candidato à Presidência da República, por exemplo, pode deixar de se posicionar em relação a algum tema. Lançar mão do plebiscito, por exemplo, como trunfo para a solução de alguma disputa de natureza política que pode “queimar” um candidato com o seu grupinho” é não reconhecer que o povo brasileiro está subordinado a uma mídia barbarizadora.
Um candidato realmente republicano e democrático é aquele que assume as lutas das minorias e, assim, se compromete com a construção de espaços realmente públicos onde as ideias de todos possam circular livremente considerando a concepção de tolerância apresentada por Forst enquanto respeito, e não apenas enquanto permissão.
Se evangélico, se ateísta, se católico, se umbandista o candidato, isso não me interessa, desde que ele não transforme a política e o seu cargo em local de culto e de pregação.
Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado e militante de direitos humanos